Das ruas às redes: os novos movimentos sociais e a reinvenção da cidadania

No início do século XXI, o mundo assistiu à emergência de um novo tipo de mobilização: movimentos que nascem na rede e ganham corpo nas ruas, ou que se sustentam inteiramente em ambientes digitais. Não se trata apenas de uma mudança de ferramentas, mas de uma nova lógica de ação coletiva, profundamente conectada com os valores da juventude contemporânea, com o desejo de visibilidade, participação e transformação social. Esses movimentos são também uma resposta ao sentimento de esgotamento das formas institucionais de representação, que muitas vezes deixam de refletir as pautas emergentes das comunidades marginalizadas e da juventude globalizada.

Se antes os grandes protestos exigiam panfletos, sindicatos ou partidos organizados, hoje basta um post comovente e uma hashtag para mobilizar milhares. O movimento #BlackLivesMatter, o #EleNão no Brasil, as marchas por justiça climática e os atos de jovens secundaristas são exemplos de como a tecnologia redesenhou as práticas de contestação (CASTELLS, 2013). São movimentos descentralizados, fluidos e muitas vezes espontâneos – e por isso mesmo, poderosos. Além disso, possuem um potencial narrativo que transforma a experiência individual em discurso coletivo, utilizando vídeos virais, relatos pessoais e testemunhos compartilhados como forma de ativismo e resistência.

As redes sociais digitais passaram a operar como espaços públicos ampliados, onde o debate político, a denúncia de injustiças e a articulação de protestos se realizam em tempo real. O ativismo digital tornou-se uma extensão (e às vezes uma substituição) das formas clássicas de participação social. Segundo Manuel Castells (2013), vivemos a era da “autocomunicação de massas”, em que cada indivíduo pode, com um simples celular, gerar impacto político e cultural global. Isso gera uma nova percepção sobre poder: o poder de influenciar está descentralizado, fragmentado entre usuários que dominam narrativas e algoritmos.

A linguagem visual, os memes, os vídeos curtos, os símbolos e estéticas próprias são marcas dos movimentos contemporâneos. A mobilização jovem está fortemente ligada à cultura pop, aos códigos das redes, às influências interseccionais e às urgências ambientais. São manifestações que não apenas denunciam, mas reivindicam reconhecimento, identidade e direito à existência plural. A estética da manifestação, nesse sentido, torna-se política: criar textos bem elaborados, elaborar banners visuais para redes sociais, produzir vídeos impactantes ou ocupar um feed são estratégias tão legítimas quanto levantar bandeiras em praça pública.

Além disso, as novas pautas ganham destaque: racismo estrutural, violência de gênero, desigualdade ambiental, transfobia, capacitismo, xenofobia. Essas lutas não substituem as antigas, mas as ressignificam a partir de novos sujeitos políticos – periféricos, racializados, indígenas, LGBTQIAPN+, mulheres e juventudes. O espaço público é ocupado por outras vozes, outras narrativas e outros horizontes. É uma reconstrução do debate democrático que traz a pluralidade como eixo fundamental de justiça e representatividade.

Entretanto, essa nova forma de engajamento também traz dilemas. A superficialidade de algumas causas, o chamado "ativismo de sofá", a manipulação algorítmica de opiniões, a polarização e a propagação de fake news são questões que desafiam a democracia. Ainda assim, não podemos negar que mesmo as formas frágeis de engajamento digital têm provocado deslocamentos importantes no debate público e no comportamento institucional (SOUZA SANTOS, 2019). Os desafios éticos da comunicação digital, como a monetização do engajamento e a cultura do cancelamento, também exigem reflexão crítica e formação cidadã.

Nas escolas, nas universidades e nos espaços formativos, é urgente debater os novos movimentos sociais como ferramentas pedagógicas de construção da cidadania. Estimular a leitura crítica do mundo, o posicionamento ético diante das injustiças e o uso consciente das tecnologias é um compromisso da educação com a democracia e a justiça social. Os educadores são chamados a reconfigurar os currículos e práticas, incluindo o protagonismo juvenil, o trabalho com projetos sociais, o estudo das redes e o estímulo à ação cidadã dentro e fora do ambiente escolar.

A cidadania, portanto, deixa de ser apenas o exercício do voto ou o cumprimento de deveres legais. Ela se expande para o direito de existir com dignidade, de expressar identidades, de lutar por causas e ocupar espaços. A rua e a internet são, juntas, os novos territórios de formação política e de invenção do comum. Esse novo paradigma exige uma reeducação sensível à diversidade, ao conflito, à escuta e à construção coletiva, onde o sujeito político se reconhece como parte ativa da transformação social.


REFERÊNCIAS

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O futuro começa agora: da pandemia à utopia. São Paulo: Boitempo, 2020.

BENEVIDES, Bruna; NOGUEIRA, Letícia. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2022. São Paulo: ANTRA, 2023. Disponível em: https://antrabrasil.org/dossie. Acesso em: 22 maio 2025.

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