A dicotomia entre civilização e barbárie atravessa séculos da história humana, sendo amplamente usada para categorizar culturas, justificar domínios e definir quem pertence à ordem ou à desordem. Desde os pensadores da Grécia Antiga, como Aristóteles, até os intelectuais do Iluminismo, a ideia de civilização esteve associada à racionalidade, à organização política e ao desenvolvimento técnico. Em contrapartida, a barbárie foi associada ao atraso, à irracionalidade e à selvageria (ELIAS, 1994).
Com o advento da modernidade e da expansão colonial europeia, os conceitos ganharam nova roupagem. A Europa passou a se colocar como o centro da civilização, projetando sobre os povos africanos, americanos e asiáticos a imagem da barbárie. Essa visão, etnocêntrica e racista, foi sustentada por diversas práticas, como a escravidão, o extermínio e a catequese forçada dos povos originários. De acordo com Fanon (2008), a ideia de civilização serviu como instrumento de domínio ideológico e material, ocultando as violências cometidas em nome do "progresso". A "missão civilizatória", tão presente na narrativa imperial, disfarçava interesses econômicos e geopolíticos sob a máscara da filantropia.
Contudo, é necessário compreender que a barbárie não está fora da civilização. Como indicam Adorno e Horkheimer (1985), os horrores do nazismo e os campos de concentração mostraram que o desenvolvimento técnico e racional pode caminhar lado a lado com a destruição humana. A chamada "razão instrumental", quando desprovida de ética e humanidade, pode produzir os piores horrores. Nesse sentido, a civilização não é, por si só, garantia de progresso moral ou social, mas pode, ao contrário, ocultar formas sofisticadas de opressão.
A modernidade, portanto, precisa ser lida não apenas como um avanço científico e institucional, mas também como um período de profunda contradição. Zygmunt Bauman (1998), ao refletir sobre o Holocausto, afirma que os mesmos instrumentos que tornaram possível a liberdade individual foram também aqueles que permitiram a destruição sistemática de milhões. Isso evidencia que a barbárie pode ser produzida por sistemas altamente organizados e tecnologicamente desenvolvidos.
Autores como Boaventura de Sousa Santos (2010) propõem a superação dessa dicotomia por meio da "ecologia dos saberes", reconhecendo que não há uma única forma de conhecimento ou de organização social que possa se impor sobre as outras. É fundamental compreender a pluralidade das culturas, valorizando os saberes populares, ancestrais, africanos e indígenas. Tais saberes não devem ser considerados como complementares, mas sim como essenciais à construção de uma sociedade mais justa e plural.
Além disso, Silvia Cusicanqui (2010), socióloga e ativista boliviana, alerta que a colonialidade do saber persiste como uma estrutura que organiza o conhecimento acadêmico. Para ela, a descolonização não pode ocorrer apenas em termos jurídicos ou estatais, mas deve alcançar a esfera do saber, das práticas cotidianas e dos afetos. Essa crítica amplia o campo da reflexão para além das estruturas formais, convidando-nos a repensar o modo como concebemos o conhecimento e a própria ideia de civilização.
Segundo Achille Mbembe (2017) também contribui significativamente para essa crítica ao apontar que a lógica da necropolítica — o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer — está enraizada em projetos coloniais que se disfarçam de civilizatórios. Em suas palavras, a barbárie moderna consiste em gerir populações inteiras como se fossem descartáveis.
Na educação, a crítica aos conceitos de civilização e barbárie deve estar presente nos currículos, especialmente no que diz respeito à história e à sociologia. Ainda hoje, os livros didáticos e conteúdos escolares reproduzem uma visão eurocêntrica que marginaliza outras formas de existência. A ausência de conteúdos que valorizem a história e a cultura afro-brasileira, indígena e latino-americana perpetua a desigualdade epistêmica e cultural nas escolas. Reverter esse quadro é essencial para uma formação cidadã e inclusiva, que prepare os estudantes para a convivência em uma sociedade plural e democrática.
É importante destacar que esse debate também se insere nas políticas públicas de educação. A Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas, é um passo importante, mas ainda insuficiente diante dos desafios enfrentados por professores na implementação efetiva dessa norma. A falta de formação docente, de materiais adequados e de apoio institucional demonstra como o ideal de civilização continua sendo monopolizado por uma lógica ocidentalizante.
Ao olharmos para o século XXI, é urgente ressignificar o que entendemos por civilização. Sustentabilidade, justiça social, diversidade cultural e dignidade humana devem estar no centro desse novo paradigma. Como educadores, é nosso papel promover o pensamento crítico e a reflexão sobre os conceitos que moldam nossa visão de mundo. Mais do que nunca, é preciso romper com os binarismos reducionistas e abrir espaço para múltiplas vozes e experiências. A civilização do futuro não poderá mais ignorar o passado de sangue sobre o qual foi erguida.
Referências:
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. Disponível em <https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/208/o/fil_dialetica_esclarec.pdf>. Adquira o livro na Amazon <https://amzn.to/43TNFoa>.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Adquira o livro na Amazon <https://amzn.to/3SwuGtC>.
CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch'ixinakax utxiwa: uma reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores. São Paulo: N-1 Edições, 2021. Adquira o livro na Amazon <https://amzn.to/3FlBZkS>
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. Adquira o livro na Amazon <https://amzn.to/45zj3JQ>.
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Adquira o livro na Amazon <https://amzn.to/4jwGvuC>
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018. Adquira o livro na Amazon <https://amzn.to/4dLhvyv>
SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. Adquira o livro na Amazon <https://amzn.to/3T9acah>