Sociedade e Cultura: O Concreto e o Simbólico na Amazônia

A Amazônia brasileira, porção significativa do bioma e também realidade social complexa, abriga uma das maiores diversidades culturais do planeta. As sociedades amazônicas, em especial as etnias indígenas, apresentam formas de organização social e cultural que articulam, de modo indissociável, elementos materiais e imateriais. Tal distinção, clássica na Antropologia e na Sociologia, permite compreender as manifestações culturais como expressões concretas e simbólicas da vida coletiva.

Segundo Laraia (2001), a cultura material refere-se aos aspectos tangíveis da vida social, como instrumentos de trabalho, habitação, vestimenta e alimentação, enquanto a cultura imaterial envolve línguas, crenças, valores, rituais e saberes. Nas sociedades indígenas da Amazônia, esses dois domínios são inseparáveis: uma canoa ou um cocar não são apenas objetos, mas partes de um sistema de significados profundamente enraizado na relação com a natureza e com o mundo espiritual.

A cultura indígena amazônica

O povo Tikuna, por exemplo, realiza o "Rito da Moça Nova", uma cerimônia de iniciação feminina que envolve práticas de isolamento, pinturas corporais e danças tradicionais, revelando uma densa rede simbólica que orienta o ciclo da vida (PEREIRA, 2024). Já entre os Baniwa, as flautas sagradas Kuripe e as narrativas sobre a origem dos peixes mostram como objetos materiais e mitos fundacionais estão interligados na educação das novas gerações.

A oralidade, as pinturas corporais, os cantos ritualísticos e os modos de manejo ambiental sustentável demonstram como a cultura imaterial se atualiza em ações cotidianas e coletivas. Ao mesmo tempo, elementos materiais como as ocas, artefatos de pesca e cestaria não podem ser compreendidos fora do seu contexto simbólico e cosmopolítico.

Entretanto, o avanço da urbanização, da exploração extrativista e das políticas assimilacionistas colocam em risco a continuidade dessas expressões culturais. A globalização e o apagamento das línguas indígenas ameaçam a transmissão dos saberes tradicionais, afetando tanto os aspectos simbólicos quanto os concretos da cultura (ALMEIDA, 2010).

A seguir, apresenta-se uma tabela que ilustra exemplos atuais da cultura indígena amazônica, distinguindo seus aspectos simbólicos (imateriais) e concretos (materiais):

Cultura Simbólica (Imaterial)Cultura Concreta (Material)
Mitos de origem e narrativas orais (ex: criação dos rios, animais sagrados)Artesanato em cerâmica, cestaria e objetos rituais
Rituais de passagem, como o Rito da Moça Nova (Tikuna)Pinturas corporais com jenipapo e urucum
Cosmologia baseada na relação espiritual com a floresta e os animaisConstrução de ocas e aldeias com arquitetura tradicional
Tradições musicais com cantos cerimoniaisFlautas sagradas, maracás, tambores indígenas
Saberes ecológicos e práticas sustentáveis de manejo da florestaUtensílios de pesca, armadilhas e canoas feitas artesanalmente
Sistema de parentesco e autoridade baseado em linhagens e anciãosTrajes típicos confeccionados com fibras, penas e sementes
Festas coletivas com danças circulares e alimentos sagradosPreparação coletiva de bebidas como o caxiri
Espiritualidade centrada nos pajés e nas práticas de curaInstrumentos de cura com plantas medicinais e resinas
Línguas indígenas (ex: nheengatu, baniwa, tikuna) como veículos de culturaMateriais didáticos bilíngues produzidos por escolas indígenas
Conhecimentos agrícolas baseados no ciclo lunar e respeito ao soloRoças tradicionais de mandioca e hortas coletivas

É importante destacar também a presença e o impacto de outras matrizes culturais na Amazônia, como a cultura cristã europeia, africana e asiática. 

A cultura cristã

A cultura cristã, introduzida com a colonização e as missões religiosas, deixou marcas profundas, especialmente através das igrejas, festas religiosas, valores morais e práticas litúrgicas que moldaram parte da vida social urbana e rural da região. As festas do Círio de Nazaré, as procissões e os santos padroeiros são exemplos de como o cristianismo se enraizou culturalmente nos calendários e nas práticas cotidianas amazônicas, influenciando até mesmo a organização do tempo e dos espaços públicos. Do ponto de vista material, a presença de capelas, igrejas monumentais, imagens sacras, vestimentas litúrgicas e objetos religiosos como crucifixos, terços e velas representam o concreto da religiosidade cristã. Esses elementos físicos constituem não apenas símbolos de fé, mas marcos arquitetônicos e referenciais identitários nas comunidades amazônicas.

No campo imaterial, destacam-se os rituais religiosos, as orações, os cantos litúrgicos, os sermões, os dogmas, a catequese e a doutrina moral que moldam subjetividades e comportamentos. A fé cristã promove um imaginário coletivo fortemente simbólico, no qual o sagrado permeia o cotidiano, influenciando práticas familiares, decisões políticas e expressões artísticas locais. Além disso, a presença de ordens religiosas na educação e na saúde consolidou uma rede de assistência social baseada em princípios cristãos, que também atua como transmissora de valores espirituais e éticos, estabelecendo pontes entre o universo simbólico da fé e a prática concreta da solidariedade social.

A cultura africana

A cultura negra, trazida com a presença forçada de africanos escravizados, manifesta-se nas danças, na culinária, nas religiões de matriz afro-brasileira (como o candomblé e a umbanda) e em expressões de resistência como o tambor de crioula, o carimbó, o batuque e o marabaixo. No plano material, destacam-se os instrumentos musicais como os tambores, atabaques e agogôs, os trajes rituais, os objetos litúrgicos, as construções comunitárias (como terreiros e centros culturais) e os pratos típicos afro-brasileiros feitos com azeite de dendê, inhame, peixe e banana-da-terra. Esses elementos compõem um repertório físico que preserva e transmite a ancestralidade africana na Amazônia.

Do ponto de vista imaterial, a cosmovisão africana manifesta-se por meio das crenças nos orixás, das cantigas e ladainhas religiosas, das narrativas orais de origem, dos rituais de iniciação, das festas de santo e da ética comunitária pautada no axé, na solidariedade e na reciprocidade. Essa dimensão simbólica da cultura negra atravessa gerações, formando identidades e modos de vida resilientes frente à opressão histórica. Essa herança afro-amazônica está presente não apenas nos festejos e rituais, mas também nas práticas agrícolas, nos modos de organização comunitária, nas tecnologias tradicionais e na luta por território e identidade. Os quilombolas da Amazônia continuam resistindo às tentativas de apagamento histórico, reivindicando seus direitos constitucionais e o reconhecimento de suas práticas como patrimônio cultural.

A cultura asiática

Já a cultura asiática, com a presença de populações japonesas, chinesas e coreanas, contribui significativamente com elementos na agricultura (introdução de hortaliças e técnicas de cultivo), na medicina tradicional (uso de plantas, acupuntura, chás e práticas holísticas), nas práticas alimentares (como o consumo de peixes crus, arroz, gengibre e soja) e nos valores familiares, pautados no respeito intergeracional, na disciplina e no trabalho coletivo. Em algumas regiões amazônicas, associações de imigrantes orientais mantêm centros culturais, escolas de língua, festivais e templos que reafirmam essa identidade plural, demonstrando que a Amazônia é um território em constante construção multicultural. 

Manaus, uma cidade multicultural

Na cidade de Manaus, essa construção multicultural manifesta-se de forma particularmente visível. A capital do Amazonas abriga um tecido social complexo que mescla elementos das culturas indígenas, cristã, negra, asiática e de outras influências migratórias. A cultura indígena, nesse contexto urbano, é amplamente ressignificada e apropriada tanto por descendentes diretos dos povos originários quanto por manauaras que reconhecem sua ancestralidade compartilhada. Grupos culturais, coletivos artísticos e empreendedores locais têm utilizado elementos da estética e dos saberes indígenas para promover ações socioeconômicas voltadas à valorização da identidade regional.

É crescente, por exemplo, o uso de grafismos indígenas na moda autoral manauara, em produtos de artesanato urbano, em murais de arte pública e até mesmo em embalagens de produtos alimentícios regionais. Além disso, iniciativas culturais e educacionais têm integrado cantos tradicionais, histórias orais e saberes medicinais em feiras, exposições e projetos de escolas públicas. Essa apropriação, quando feita com respeito e parceria com os povos indígenas, fortalece uma identidade coletiva amazônica urbana que se orgulha de suas raízes e vê na cultura ancestral uma via de geração de renda, de resistência simbólica e de fortalecimento comunitário.

Nesse contexto, a educação intercultural assume papel fundamental. Ela deve respeitar e incorporar os saberes dos povos originários, bem como das demais matrizes culturais presentes na Amazônia, reconhecendo o valor das culturas locais não como exóticas ou folclóricas, mas como sistemas complexos e legítimos de conhecimento e organização social. Trata-se de promover uma educação antirracista, plural e decolonial, conforme propõem os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) e os princípios da BNCC, especialmente no que tange à competência geral 5: a valorização da diversidade cultural.

Conclui-se que compreender a Amazônia para além da floresta é reconhecer que sua riqueza não está apenas na biodiversidade, mas sobretudo na pluralidade de seus povos e culturas. Valorizar o concreto e o simbólico, o material e o imaterial, é uma tarefa essencial para qualquer projeto de educação cidadã e inclusiva na região.


Referências

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Pluralidade Cultural. Brasília: MEC/SEF, 1998. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro101.pdf>. Acesso em 01 jun 2025.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília: MEC, 2018.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 21. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Disponível <aqui>. Acesso em 01 jun 2025. Adquira o livro na Amazon <https://amzn.to/4kP5L0r>.

PEREIRA, Cláudia de Moraes Martins. O rito da moça nova do povo Ticuna.  Belo Horizonte: Editora Expert, 2024. Disponível em <https://experteditora.com.br/wp-content/uploads/2024/12/O-Ritual-da-Moca-Nova-do-Povo-Tikuna-Dialogo-Intercultural-e-os-Direitos-dos-Povos-Indigenas-no-Brasil.pdf>. Acesso em 01 jun 2025.

MORI, Koichi. Japoneses na Amazônia: a saga dos imigrantes japoneses no Brasil. São Paulo: Editora da USP, 2013. Adquira o livro na Amazon <https://amzn.to/4kiYuWB>.

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