A história da colonização não terminou com a independência política dos países latino-americanos, africanos ou asiáticos. Pelo contrário, ela persiste de forma invisível por meio de estruturas de poder, saber e ser que moldam o mundo moderno. Essa permanência é o que Aníbal Quijano denominou de "colonialidade do poder", conceito que denuncia como os padrões de dominação colonial continuam operando nas formas de conhecimento, nas hierarquias sociais e nas instituições. Segundo Quijano (2005, p. 117), "a América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira identidade da modernidade". Quijano explica que dois processos históricos estruturaram esse novo padrão de poder moderno/colonial: a invenção da ideia de raça como justificativa da dominação e a articulação global do trabalho em torno do capital e do mercado mundial.
Neste sentido, o pensamento decolonial surge como uma resposta epistemológica e política a essa realidade que nos foi imposta. Diferente de uma simples crítica ao colonialismo histórico, trata-se de uma proposta de ruptura com o eurocentrismo como paradigma hegemônico de saber. Walter Mignolo (2007, p. 77) afirma que a chegada dos conquistadores significou um verdadeiro pachakuti, ou seja, "invasão violenta, destruição sem piedade, desprezo pela forma de vida existente, e momento de fundação da ferida do mundo moderno/colonial".
A palavra Pachakuti tem origem na língua quéchua, falada por diversos povos andinos, especialmente os incas. Em sua tradução mais comum, pacha significa "tempo" ou "mundo", e kuti quer dizer "virada" ou "retorno". Portanto, Pachakuti pode ser compreendido como uma grande transformação ou inversão do mundo. Tradicionalmente, o termo designava momentos de mudança cósmica e social profunda, de colapso e renascimento do tempo e da ordem vigente.
No pensamento decolonial, autores como Walter Mignolo utilizam Pachakuti para simbolizar a violência da colonização europeia nas Américas — um evento catastrófico que reconfigurou radicalmente as formas de vida, os saberes e os territórios dos povos originários. Segundo Mignolo (2007, p. 77), foi nesse processo que se fundou a "ferida colonial" do mundo moderno, marcada pela imposição de uma civilização e a negação de outras.
Assim, Pachakuti não é apenas uma palavra ancestral, mas um conceito insurgente que, no contexto contemporâneo, pode representar também a possibilidade de uma nova virada: a virada decolonial.
Portanto, a decolonialidade é um conceito que propõe a ruptura com os legados da colonização que ainda persistem nas estruturas de poder, saber e ser do mundo moderno. Ela difere do colonialismo por não se referir apenas à ocupação territorial, mas à lógica de dominação cultural, epistêmica e social que continua a moldar as sociedades pós-coloniais. Segundo Quijano (2005), a colonialidade é um padrão de poder mundial baseado na classificação racial da população e na naturalização de hierarquias sociais e cognitivas. Mignolo (2007) reforça que modernidade e colonialidade são duas faces da mesma moeda e que a decolonialidade busca transformar esse paradigma a partir da escuta de vozes silenciadas. Walsh (2019) propõe um pensamento "outro", construído desde a diferença colonial, como alternativa ao saber acadêmico eurocêntrico. Por sua vez, Santos e Meneses (2009) denunciam o epistemicídio promovido pela ciência moderna, que suprime saberes populares e indígenas. Assim, a decolonialidade é tanto crítica quanto propositiva, e envolve uma ecologia de saberes baseada em respeito, reconhecimento e horizontalidade.
Na educação, essa crítica assume contornos ainda mais urgentes. O currículo escolar, como bem analisa Catherine Walsh (2019, p. 9), tem servido historicamente como um instrumento de reprodução da colonialidade, promovendo uma única visão de mundo: branca, masculina, cristã e europeia. Superar essa lógica requer uma reestruturação profunda dos processos educativos, centrando-se na escuta dos territórios, na valorização dos saberes locais e na construção de uma pedagogia decolonial. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), apesar de avanços em áreas como a Educação das Relações Étnico-Raciais, ainda carrega resquícios dessa lógica eurocêntrica. A presença da cultura digital e da pluralidade é tratada, por vezes, de maneira superficial, sem integrar verdadeiramente os saberes das comunidades historicamente marginalizadas. Conforme Santos e Meneses (2009, p. 10), "o colonialismo, para além de todas as dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica".
A interseccionalidade também é central na abordagem decolonial. Pensar decolonialmente é compreender como raça, gênero, classe e território se articulam na produção de desigualdades. Achille Mbembe (2016, p. 123) introduz o conceito de "necropolítica" ao discutir o exercício da soberania como o poder de "ditar quem pode viver e quem deve morrer".
Além disso, a linguagem, a estética e a arte são territórios de disputa e resistência. A valorização de culturas populares, de línguas indígenas, de expressões afro-brasileiras e de formas de conhecimento não institucionalizadas são fundamentais para uma verdadeira decolonialidade do saber. Isso implica abrir espaço para outras formas de narrar, ensinar, aprender e viver.
No Brasil contemporâneo, diversas experiências têm florescido como práticas de resistência decolonial. Projetos de educação quilombola, escolas indígenas, coletivos periféricos e universidades comprometidas com a extensão crítica são exemplos concretos de como é possível tensionar o modelo hegemônico e construir novos caminhos. No entanto, essas experiências ainda enfrentam forte resistência por parte das instituições e políticas públicas centralizadas.
Conclui-se, portanto, que o pensamento decolonial é mais que uma teoria: é uma prática insurgente, um convite à transformação radical da forma como conhecemos, nos organizamos e nos educamos. Adotá-lo é, antes de tudo, um ato de coragem e de compromisso com a justiça social e epistêmica.
Referências
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Revista Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 122-125, dez. 2016. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8988. Acesso em: 23 jun. 2025.
MIGNOLO, Walter D. La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa Editorial, 2007.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: CLACSO, 2005. Disponível em: https://biblioteca-repositorio.clacso.edu.ar/bitstream/CLACSO/5772/1/12_Quijano.pdf. Acesso em: 23 jun. 2025.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2009.
WALSH, Catherine. Interculturalidade e decolonialidade do poder: um pensamento e posicionamento "outro" a partir da diferença colonial. Revista da Faculdade de Direito de Pelotas, Pelotas, v. 5, n. 1, p. 6-9, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/revistadireito/article/view/15002. Acesso em: 23 jun. 2025.