Comunidades quilombolas reconhecidas no Amazonas
A presença da população negra no estado do Amazonas manifesta-se de forma singular, sobretudo através das comunidades quilombolas. Até recentemente, poucas dessas comunidades tinham reconhecimento oficial no estado, reflexo de um longo histórico de invisibilidade social. Os primeiros quilombos amazonenses a obter certificação federal incluem: a Comunidade do Tambor (Novo Airão), reconhecida em 2006; as comunidades do Rio Andirá (Barreirinha), um conjunto de cinco localidades ribeirinhas certificadas em 2013; o Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa (Itacoatiara), certificado em 2014; e o Quilombo do Barranco de São Benedito (bairro Praça 14, Manaus), reconhecido em 2014 como o segundo quilombo urbano do Brasil.
Em 2025, soma-se a esses o Quilombo da Baixa da Xanda, no município de Parintins – território onde nasceu o Boi-Bumbá Garantido – reconhecido oficialmente como comunidade remanescente de quilombo pela Fundação Palmares, tornando-se o primeiro quilombo de Parintins. A certificação da Baixa da Xanda, publicada no Diário Oficial da União de 6 de junho de 2025, representou uma conquista histórica, afirmando a identidade e a trajetória de resistência dessa comunidade formada por descendentes de africanos escravizados e populações indígenas na região.
Esse quadro de reconhecimentos ainda é bastante recente e limitado diante do número total de comunidades quilombolas existentes no Brasil. Em nível nacional, estima-se a existência de mais de 8 mil comunidades quilombolas, mas apenas cerca de metade delas (3.940) possuía certificação oficial até meados de 2025. No Amazonas, a escassez de comunidades reconhecidas evidencia a invisibilidade histórica da presença negra local. Somente em 2013 o governo federal realizou a segunda leva de certificações no estado (Rio Andirá), e outras comunidades negras tradicionais amazonenses seguem sem reconhecimento formal. Pesquisadores apontam a existência de grupos remanescentes de quilombos em municípios como Manaquiri, Barcelos e Itacoatiara, cujos moradores são identificados como comunidades negras rurais, embora ainda não se autodefinam oficialmente como quilombolas (mas podem vir a fazê-lo). Essa baixa visibilidade institucional torna essas comunidades mais frágeis em termos de garantias de direitos territoriais, sobretudo quando comparadas às terras indígenas já demarcadas.
População negra e quilombola no Amazonas: dados demográficos
Os dados do censo do IBGE evidenciam que a população do Amazonas é majoritariamente composta por pessoas que se autodeclaram negras (no sentido amplo de pretos ou pardos). Conforme o Censo Demográfico de 2022, 68,8% dos habitantes do estado se declararam de cor parda e 4,9% de cor preta, totalizando aproximadamente 73,7% de população considerada negra. Em contraste, apenas 18,4% dos amazonenses se declararam brancos, o menor percentual de população branca entre todos os estados brasileiros. Além disso, o Amazonas possui uma expressiva proporção de população indígena autodeclarada (cerca de 12,5%), bem acima da média nacional. Esse perfil demográfico reflete a intensa miscigenação regional entre povos indígenas, descendentes de africanos e outras etnias, compondo a identidade plural do estado. (IBGE, 2022)
Quando se trata da população quilombola, os números são bem mais modestos, o que era esperado dado o histórico sub-registro dessa categoria no Amazonas. O Censo 2022 foi o primeiro a investigar especificamente os quilombolas e contabilizou cerca de 1,33 milhão de pessoas quilombolas no Brasil (0,65% da população nacional), segundo dados do IBGE.
A maioria absoluta dos quilombolas reside no Nordeste (68% do total), enquanto a região Norte responde por aproximadamente 12,5% desse contingente (cerca de 166 mil pessoas). No Amazonas, em particular, a população quilombola corresponde a uma fração ínfima do total estadual – não há dados oficiais detalhados publicados por estado até o momento inicial do censo, mas estima-se que seja da ordem de apenas poucos milhares de pessoas. Por exemplo, nas cinco comunidades quilombolas de Barreirinha (Rio Andirá) vivem aproximadamente 1.135 pessoas (227 famílias). Somando-se os moradores de outras comunidades certificadas (como Tambor, Serpa, São Benedito e Baixa da Xanda), é possível inferir que todos os quilombolas amazonenses somados representem bem menos de 1% da população do estado. Esse cenário reforça a necessidade de políticas de identificação e apoio, pois muitos descendentes de quilombolas na Amazônia podem não ter se reconhecido como tais no censo devido à falta de informação ou reconhecimento comunitário.
A controvérsia da autodeclaração parda e os limites das categorias do IBGE
Um dos desafios mais complexos na análise da presença negra no Amazonas diz respeito à categoria "parda" utilizada pelo IBGE. Embora estatisticamente esse grupo integre a população considerada negra (pretos + pardos), o contexto amazônico revela especificidades que colocam essa classificação sob questionamento. Na região Norte, grande parte da população parda é fruto da miscigenação entre indígenas e brancos, o que torna impreciso inferir que todas as pessoas pardas compartilham uma identidade negra ou quilombola. Isso cria uma distorção estatística e sociológica, pois o aumento da população "negra" nos números não necessariamente reflete um fortalecimento da consciência negra ou da identidade afrodescendente na Amazônia.
Essa questão é agravada pela falta de conhecimento histórico e educacional sobre os próprios processos de racialização na região. Muitos amazonenses pardos não reconhecem em si raízes afrodescendentes, identificando-se culturalmente com a matriz indígena, ribeirinha ou cabocla. Ao serem contabilizados como negros nas estatísticas nacionais – por imposição metodológica – perdem-se nuances importantes sobre suas trajetórias étnico-raciais. Como destaca Munanga (2003), o termo “pardo” é historicamente carregado de ambiguidade e negação da negritude, sendo muitas vezes usado como forma de branqueamento simbólico em um país marcado pelo mito da democracia racial.
Essa limitação dos instrumentos censitários acaba por invisibilizar a diversidade étnico-racial da Amazônia, prejudicando o desenho de políticas públicas específicas. A ausência de uma categoria que diferencie "pardos de matriz indígena" dos "pardos afrodescendentes", por exemplo, impede uma compreensão mais justa das desigualdades raciais regionais. Ao homogenizar identidades plurais sob uma só cor estatística, o Estado perde a chance de agir com precisão e equidade. Mais do que uma falha técnica, trata-se de um problema político-epistemológico, que exige reflexão crítica e revisão das categorias censitárias para que elas não apenas contem, mas também reconheçam os sujeitos reais e suas histórias singulares na floresta.
Formação histórica dos quilombos na região amazônica
A formação de quilombos na Amazônia se insere num contexto histórico distinto daquele de outras regiões do Brasil. Durante o período colonial e imperial, o Amazonas teve uma economia escravista menos voltada à monocultura e mais ligada a atividades extrativistas e ao ciclo da borracha, mas ainda assim contou com pessoas escravizadas de origem africana trabalhando em fazendas, serviços urbanos e na exploração de produtos da floresta. Muitos desses escravizados buscaram a fuga e encontraram refúgio em locais de difícil acesso na selva ou junto a comunidades indígenas, originando núcleos de quilombos regionais.
No final do século XIX, com a Abolição (1888) e as migrações internas, houve também fluxos de afrodescendentes vindos de outras províncias para o Amazonas (especialmente do Nordeste, atraídos pelo boom da borracha e outras oportunidades). Esses grupos, ao se estabelecerem em terras amazônicas, levaram à formação de comunidades negras rurais e urbanas que preservaram elementos culturais e laços de solidariedade próprios.
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Comunidade Quilombola Barreirinha no Amazonas (Foto: Amazônia Real) |
Vários quilombos amazônicos têm origem em histórias de resistência e miscigenação. No baixo rio Amazonas, por exemplo, relata-se que um africano escravizado de nome Benedito Pereira de Castro, oriundo de Angola, após passar pelo Pará, estabeleceu-se na região de Barreirinha e casou-se com uma mulher indígena da etnia Sateré-Mawé após a abolição. Seus descendentes formaram as comunidades negras ribeirinhas do rio Andirá, que mais de um século depois seriam reconhecidas como quilombolas.
De modo semelhante, a comunidade do Lago de Serpa, em Itacoatiara, remonta a um grupo de africanos trazidos ao Amazonas na década de 1850: registros indicam que 26 angolanos libertos foram enviados a uma colônia agrícola em Itacoatiara em 1857; após o fracasso desse projeto colonial, eles migraram para a região do lago em torno de 1870, onde seus descendentes permanecem até hoje. Esse quilombo do Serpa, certificado em 2014, é exemplo emblemático de como a presença negra se amalgamou às realidades locais amazônicas desde o século XIX.
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Foto: Árvore Genealógica do Quilombo de São Benedito (AM) (InfoAmazônia) |
No contexto urbano, a capital Manaus também possui um legado quilombola. O Quilombo do Barranco de São Benedito formou-se a partir do clã familiar de Maria Severa Nascimento Fonseca, mulher negra escravizada que migrou do Maranhão para Manaus no final do século XIX. Sua família estabeleceu-se no bairro Praça 14 de Janeiro e, ao longo de gerações (hoje são 145 núcleos familiares descendentes), manteve vivas tradições afro-amazonenses, apesar de décadas de marginalização. Esse núcleo urbano só foi reconhecido como quilombo em 2014, após intervenção do Ministério Público Federal e mobilização comunitária para documentar sua história. Esses processos tardios de reconhecimento mostram que os quilombos amazônicos sobreviveram através da oralidade, da memória coletiva e da resistência cotidiana, mesmo que por muito tempo não fossem oficialmente nomeados como tais.
Em síntese, a conformação dos quilombos na Amazônia resultou da junção de trajetórias de fuga da escravidão, reassentamento pós-abolição e alianças interétnicas. Diferentemente dos quilombos icônicos do Nordeste (como Palmares) ou Sudeste, que envolveram milhares de pessoas, os quilombos amazônicos constituíram-se geralmente de pequenos agrupamentos familiares em áreas isoladas, integrados ao ambiente florestal e fluvial. Essa escala menor e dispersão geográfica contribuíram para a sua invisibilidade histórica, mas não diminuem seu significado sociocultural enquanto redutos de liberdade e afirmação da população negra na região.
Sociabilidades quilombolas: modos de vida, cultura e espiritualidade
As comunidades quilombolas amazonenses desenvolveram modos de vida adaptados ao contexto ribeirinho e florestal, valorizando a coletividade, a subsistência comunitária e a preservação cultural. Tradicionalmente, muitas dessas comunidades vivem da pesca artesanal, da agricultura de pequena escala (como roçados de mandioca, frutas regionais etc.) e do extrativismo sustentável, em harmonia com o ecossistema local. O trabalho é frequentemente organizado de forma familiar e coletiva, com apoio mútuo entre os membros da comunidade, reforçando laços de solidariedade econômica e social (o que remete às práticas de mútua ajuda herdadas dos antepassados). Essa organização social baseada na entreajuda foi crucial para a sobrevivência física e cultural dos quilombos, sobretudo em face de pressões externas e do isolamento geográfico.
No campo cultural e espiritual, as comunidades quilombolas do Amazonas exibem uma rica pluralidade de práticas, resultante do encontro de influências africanas, indígenas e luso-brasileiras. A religiosidade é um pilar central: muitas comunidades mantêm devoções católicas populares associadas a santos negros, ao mesmo tempo em que incorporam elementos de espiritualidade afro-amazônica e indígena. Um exemplo marcante é a própria Baixa da Xanda, em Parintins, onde coexistem tradições do catolicismo popular (como festas juninas e padroeiros católicos) com saberes espirituais de matriz africana e rituais de pajelança indígena. A figura da benzedeira/rezadeira – típica tanto de comunidades negras quanto indígenas – é valorizada: Dona Alexandrina, a “Dona Xanda”, matriarca que dá nome ao quilombo de Parintins, era benzedeira e artesã, descendente de escravizados, e transmitiu conhecimentos de cura e fé para sua comunidade. Essa mistura de crenças reflete a trajetória híbrida dos quilombolas amazônicos, que reelaboraram suas espiritualidades unindo o culto a santos católicos (como São Benedito, São José, Nossa Senhora) a práticas mágicas e de cura de origem africana e ameríndia.
A festa de São Benedito no Quilombo do Barranco (Manaus) ilustra bem as sociabilidades quilombolas urbanas. Todos os anos, durante a Semana Santa, os moradores erguem o tradicional mastro de São Benedito, decorado com frutas, fitas e folhas, celebrando em um ritual centenário que dura nove dias, com procissões, novenas e danças em homenagem ao santo padroeiro (São Benedito é considerado protetor dos escravizados). Essa festividade, conhecida como Festa do Mastro, envolve toda a comunidade e é organizada principalmente pelas mulheres, num forte ritmo matriarcal: anciãs e líderes femininas transmitem às mais jovens as responsabilidades de preparar os festejos e manter a tradição viva. Desse modo, as quilombolas mantêm vivas memórias e valores de seus antepassados através de celebrações coletivas de fé, música, dança e culinária.
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Foto: Quilombo da Baixa da Xanda (Por Yasmin Cadore n0 Amazonas Cultura) |
Outro traço cultural relevante é a participação das comunidades quilombolas nas manifestações populares do Amazonas, a exemplo do Boi-Bumbá. O Boi Garantido – um dos bois do famoso Festival Folclórico de Parintins – nasceu justamente no seio de uma comunidade negra periférica (a Baixa da Xanda) em 1913, criado por Lindolfo Monteverde, neto de Dona Xanda. Até hoje, o Boi Garantido é orgulhosamente associado a esse legado comunitário; a cultura do boi-bumbá, com seus cantos (toadas), indumentárias e dramatizações, tornou-se parte da identidade quilombola local, funcionando também como veículo de resistência e autoexpressão do povo negro amazônico. Nas palavras de Suzan Monteverde, liderança jovem da Baixa da Xanda, o reconhecimento oficial do quilombo pelo Estado “afirma uma história de resistência negra, de luta e pertencimento” e valoriza um modo de vida baseado na coletividade, cultura e preservação da memória. Ou seja, a cultura – seja na forma de festivais, seja na fé religiosa – atua como cola social e fonte de força política para essas comunidades, transmitindo conhecimentos tradicionais e reafirmando identidades.
Interculturalidade com povos indígenas: convivência, resistência e solidariedade
A história dos quilombos amazônicos está profundamente entrelaçada com a dos povos indígenas, resultando em ricas experiências de interculturalidade. Desde os primórdios, muitas comunidades quilombolas formaram-se em áreas próximas ou sobrepostas a territórios indígenas, o que propiciou trocas culturais intensas e, em vários casos, relações de parentesco. Conforme citado, não raramente ex-escravizados africanos casaram-se com indígenas ou passaram a habitar terras tradicionais indígenas após fugirem da escravidão ou com o fim desta. Essa união de povos originários e descendentes de africanos legou às comunidades quilombolas traços culturais indígenas (na língua regional, nas práticas de uso da floresta, na medicina tradicional, etc.) e, inversamente, influenciou os povos indígenas vizinhos com elementos afro-brasileiros. Na Baixa da Xanda, por exemplo, a comunidade reconhece ter tanto identidade negra quanto indígena em sua formação – trata-se de um espaço onde “a união de povos negros, indígenas e ribeirinhos vindos de diferentes regiões da Amazônia” consolidou laços comunitários ao longo das décadas. Essa interculturalidade se reflete nos costumes cotidianos (alimentação, técnicas agrícolas, conhecimentos ecológicos compartilhados) e nas crenças, como visto na mescla de pajelança e benzimento.
Do ponto de vista político, quilombolas e indígenas frequentemente enfrentam desafios comuns e têm atuado de forma solidária na defesa de seus direitos. Ambos os grupos são considerados povos e comunidades tradicionais pela legislação brasileira, com direitos assegurados na Constituição de 1988 (artigo 68 do ADCT, no caso dos remanescentes de quilombos, e artigos 231-232 para os indígenas).
No Amazonas, essa solidariedade é visível em pautas como a luta pela regularização fundiária de seus territórios, a conservação ambiental e o combate a invasões e atividades ilegais (grilagem de terras, extração de madeira, garimpo, pesca predatória, etc.). Quilombos como o do Tambor (Novo Airão), inserido dentro de uma unidade de conservação (Parque Nacional do Jaú), enfrentaram resistências de setores ambientalistas que priorizavam uma visão preservacionista excludente de pessoas. Hoje, porém, prevalece o entendimento de que a presença de populações tradicionais com direitos garantidos contribui positivamente para proteger a floresta. Nessa perspectiva, comunidades indígenas e quilombolas tornam-se aliadas na conservação do bioma amazônico, pois ambas detêm conhecimentos tradicionais de manejo sustentável e possuem interesse em salvaguardar seus territórios contra a devastação.
Há também episódios de apoio e articulação conjunta em espaços institucionais. Mecanismos como conselhos, audiências públicas e conferências regionais de povos tradicionais no Amazonas vêm reunindo lideranças quilombolas e indígenas para discutir demandas compartilhadas – por exemplo, acesso a políticas de saúde intercultural, educação diferenciada, e inclusão nos planos de desenvolvimento regional. Esse diálogo intercultural fortalece a resistência coletiva: ao perceberem a convergência de suas lutas, quilombolas e indígenas constroem alianças que amplificam suas vozes perante o poder público. A nível simbólico, celebrações como o Novembro Negro (Consciência Negra) e o Abril Indígena frequentemente contam com a participação mútua de representantes, evidenciando respeito e reconhecimento recíprocos.
Em Parintins, conforme registrado, a própria celebração do reconhecimento da Baixa da Xanda como quilombo destacou a memória de suas matriarcas negras e indígenas (Dona Germana e Dona Xanda) como um ato de justiça histórica para grupos antes “esquecidos e invisibilizados”. Esse resgate da memória comum de opressão e luta reforça a solidariedade entre os povos – ambos conscientes de que a colonização impôs violências semelhantes, seja pela escravização africana, seja pelo esbulho das terras indígenas. Portanto, a convivência entre quilombolas e indígenas no Amazonas transcende a mera proximidade geográfica: trata-se de uma aliança forjada na resistência, na partilha de saberes e na construção de um futuro em que viver bem (bem-viver) seja possível em seus territórios tradicionais.
Desafios atuais: invisibilidade, políticas públicas e educação antirracista
Apesar dos avanços recentes, a presença negra quilombola no Amazonas ainda enfrenta invisibilidade social e desafios para plena cidadania. Por muito tempo, a narrativa dominante sobre a Amazônia destacou quase exclusivamente os povos indígenas e a natureza, relegando a população negra local a um segundo plano ou mesmo ignorando-a. Esse memoricídio – apagamento histórico-cultural – é algo que lideranças quilombolas e pesquisadores têm buscado reverter através do reconhecimento oficial e da valorização da memória ancestral. A certificação de comunidades como quilombos é um passo importante: trata-se de um “abre-portas” para políticas afirmativas e direitos específicos, conforme destaca a Fundação Palmares.
Com o reconhecimento, comunidades quilombolas passam a acessar programas governamentais voltados à melhoria de infraestrutura, moradia, educação, saúde e inclusão produtiva, caso do recém-lançado programa Aquilomba Brasil (coordenado pelo Ministério da Igualdade Racial). No Amazonas, iniciativas intersetoriais começam a chegar a essas comunidades – por exemplo, projetos de abastecimento de água, instalação de escolas rurais e unidades básicas de saúde adaptadas culturalmente –, porém ainda de forma incipiente. A titulação das terras quilombolas, fundamental para a segurança territorial, também caminha lentamente: o INCRA, responsável pelo processo, esbarra em entraves burocráticos e conflitos fundiários. A comunidade do Tambor, primeira reconhecida no estado, aguarda há anos a conclusão da regularização de seu território, que segue pendente devido a impasses jurídicos e à necessidade de conciliação com a legislação ambiental do parque nacional. Essa demora expõe as famílias a ameaças de invasores e à insegurança quanto ao uso de suas terras tradicionais.
Combater a invisibilidade também requer investimentos em educação antirracista e decolonial. É imprescindível inserir nos currículos escolares a história e a cultura dos afro-amazonenses, incluindo a formação dos quilombos locais, suas contribuições e lutas. Leis federais já determinam, desde os anos 2000, o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena (leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008), mas a efetivação desses conteúdos ainda é desafiadora.
Uma educação decolonial no Amazonas significa questionar narrativas eurocêntricas e sudestinas que invisibilizaram os negros na Amazônia, e valorizar os “saberes insurgentes” dessas comunidades tradicionais (ancestralidade africana, medicina popular, arte e religiosidade afro-amazônica, etc.). Experiências pedagógicas podem ser enriquecidas com diálogos interculturais – por exemplo, universidades e escolas técnicas desenvolvendo projetos de extensão em comunidades quilombolas, promovendo trocas de conhecimento e empoderamento comunitário.
Por fim, é fundamental ampliar a conscientização da sociedade amazonense sobre o racismo estrutural e ambiental que afeta as populações negras. As comunidades quilombolas, embora guardiãs de importantes territórios e culturas, muitas vezes permanecem à margem das políticas públicas e do imaginário coletivo. Dar visibilidade a essas comunidades – por meio da mídia, de pesquisas acadêmicas e de eventos culturais – é parte do processo de descolonização do olhar sobre a Amazônia. Isso inclui reconhecer que a Amazônia não é apenas verde (floresta) e vermelha (indígena), mas também negra, no sentido das heranças africanas que ali fincaram raízes. Fortalecer uma educação antirracista e decolonial é, portanto, apostar na formação de novas gerações que conheçam e respeitem a contribuição do povo negro na construção da região, rompendo estereótipos e promovendo a equidade. Somente com o reconhecimento histórico, a implementação de políticas públicas inclusivas e a transformação educativa será possível superar séculos de invisibilidade e assegurar que as comunidades quilombolas do Amazonas alcancem plena cidadania, mantendo vivas suas identidades e seus territórios de resistência.
Como referenciar este texto:
Blog do Lab de Educador. Presença negra no Amazonas: Quilombos, história e resistência. Zevaldo Sousa. Publicado em: 23/06/2025. Link da Postagem: https://blog.labdeeducador.com.br/2025/06/presenca-negra-no-amazonas-quilombos.html. {codeBox}
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Referências
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