Por Zevaldo Sousa
1. Introdução
A formação dos estados nacionais na América Latina carrega consigo uma herança colonial que se manifesta através de práticas paternalistas e autoritárias profundamente enraizadas nas estruturas sociais e políticas da região. Essas características, combinadas com o posterior desenvolvimento de movimentos populistas, constituem elementos centrais para a compreensão da dinâmica política latino-americana e brasileira, tanto em períodos ditatoriais quanto democráticos.
O paternalismo, enquanto forma de exercício do poder que infantiliza os governados e concentra decisões nas mãos de uma elite dirigente, encontra suas raízes no período colonial e se perpetua através de diferentes configurações políticas ao longo da história regional. Paralelamente, o populismo emerge como fenômeno político que, embora possa apresentar características democratizantes, frequentemente reproduz relações verticalizadas de poder e personalização da política.
Este artigo tem como objetivo analisar a formação dos estados latino-americanos e brasileiros sob a perspectiva da herança paternalista nas relações de poder, bem como examinar o fenômeno político do populismo na região e seus reflexos na sociedade contemporânea. A relevância deste estudo justifica-se pela necessidade de compreender os desafios históricos e estruturais que permeiam a consolidação democrática na América Latina, contribuindo para o desenvolvimento de estratégias educacionais que promovam a autonomia, o diálogo e o fortalecimento da cidadania.
2. A formação dos estados latino-americanos e a herança paternalista
2.1. Raízes Coloniais do Paternalismo
A formação dos Estados latino-americanos foi profundamente marcada pela herança colonial ibérica, que instituiu estruturas de poder centralizadas, hierárquicas e personalistas. No caso brasileiro e hispano-americano, o modelo administrativo português e espanhol era patrimonialista, ou seja, não havia clara distinção entre as esferas pública e privada no exercício do poder (CAMPANTE, 2003). As funções públicas eram frequentemente entendidas como extensões dos domínios pessoais dos governantes, levando a uma apropriação privada do Estado. Segundo Raymundo Faoro (2001), a formação do Estado brasileiro se deu por meio de um “estamento burocrático” de raízes ibéricas, em que uma camada de poderosos controla o Estado em benefício próprio, perpetuando uma relação de favor e privilégio como base da autoridade. Nesse arranjo patrimonial, o Estado assume um papel paternal, apresentando-se como provedor e protetor da sociedade, mas em troca mantém a população em posição subordinada e dependente (CAMPANTE, 2003).
Essa lógica paternalista remonta à autoridade patriarcal tradicional, na qual o governante (o “pai” do povo) é visto como figura benevolente, mas ao mesmo tempo detém poder arbitrário sobre seus súditos (CAMPANTE, 2003). Durante a Colônia, tanto no Brasil colonial quanto nas colônias espanholas, o poder dos vice-reis, governadores e senhores de terras baseava-se em relações pessoais de mando e obediência. Formou-se uma cultura política de personalismo, em que leis e instituições formais tinham menos peso do que as relações de lealdade e favor. Sérgio Buarque de Holanda (1995) descreve, em Raízes do Brasil, o tipo social derivado desse contexto: o “homem cordial”. Longe de significar gentileza, a cordialidade definida por Holanda refere-se a uma predisposição ao personalismo, em que as relações familiares e de amizade se sobrepõem às normas impessoais da vida pública. Assim, o brasileiro cordial tenderia a misturar o privado com o público – por exemplo, tratando a coisa pública com familiaridade, como se fosse extensão de sua casa – o que favorece práticas nepotistas e patrimonialistas. Em uma sociedade "cordial", prevalece a lógica da lealdade pessoal e da emoção sobre o racional-legal. Isso contribuiu para perpetuar práticas paternalistas: o cidadão, acostumado a depender do “favor” de autoridades próximas, não desenvolve plenamente uma atitude de cobrança impessoal de direitos. Pelo contrário, tende a esperar que o governante aja como benfeitor, quase como um “pai dos habitantes”, ao mesmo tempo em que aceita sua autoridade superior.
Um reflexo dessa herança colonial foi a instituição de sistemas locais de poder paternalista, como o mandonismo e o coronelismo. No Brasil, durante a República Velha (1889-1930), consolidou-se o poder dos “coronéis” – grandes fazendeiros e oligarcas regionais – que atuavam como chefes políticos locais distribuindo favores em troca de obediência e votos (o chamado “voto de cabresto”). O coronelismo é exemplo típico de paternalismo político: o coronel tratava os moradores de “sua” região quase como dependentes, oferecendo proteção, pequenas benesses ou empregos públicos, enquanto esperava lealdade absoluta. Essa rede de clientelismo conectava as bases rurais ao topo do Estado, perpetuando a verticalidade do poder. Embora o coronelismo tenha características específicas do Brasil, fenômenos semelhantes de caciquismo ocorreram em outros países latino-americanos pós-independência, nos quais os “caciques” locais exerciam domínio pessoal sobre suas clientelas em detrimento de instituições impessoais. Tais dinâmicas mostram a persistência das relações de poder pré-democráticas, enraizadas na cultura colonial.
Em resumo, as raízes coloniais do paternalismo latino-americano estão na sobrevivência de uma mentalidade patrimonialista, na qual o Estado é visto não como resultado da vontade popular, mas como instância protetora e autoritária gerida por uma elite que se considera “dona do poder” (na expressão de Faoro). Essa base histórica explica por que, mesmo após a independência, nossos países tiveram dificuldade em implantar plenamente princípios republicanos e democráticos, já que práticas personalistas e clientelistas permaneceram como parte do “DNA” político regional.
2.2. Consolidação das Estruturas Paternalistas no Período Republicano
A independência das nações latino-americanas, no século XIX, não significou uma ruptura total com as estruturas coloniais de poder. Ao contrário, muitas dessas estruturas foram reconfiguradas e adaptadas nos novos Estados nacionais, mantendo características do paternalismo patrimonialista sob aparências modernas. No Brasil, por exemplo, a Proclamação da República (1889) substituiu o Império, mas não alterou imediatamente a lógica de poder das elites agrárias. Como analisou Caio Prado Júnior (2011), a formação do Estado brasileiro manteve continuidades com o período colonial em aspectos fundamentais: a concentração fundiária (grandes latifúndios controlados por oligarquias), a exploração do trabalho (antes escravo, depois formas precárias de trabalho rural) e as relações clientelistas entre governantes e governados. Essas continuidades permitiram que a elite republicana reproduzisse um Estado paternalista, que se apresentava como “provedor de favores” à população mas, na prática, conservava estruturas de dominação e exclusão social.
Durante a Primeira República brasileira (1889-1930), o clientelismo e o coronelismo sustentaram um sistema político oligárquico. A participação popular restringia-se ao voto de parcelas da população (excluía analfabetos, por exemplo) e mesmo esse voto era controlado pelos “padrinhos políticos”. Situação semelhante ocorreu em diversos países hispano-americanos, onde caudilhos regionais e caciques mantiveram seu poder local dentro das jovens repúblicas. Em suma, as Repúblicas oligárquicas latino-americanas do final do século XIX e início do XX consolidaram formas republicanas na fachada (presidentes, constituições, parlamentos), porém com práticas paternalistas e autoritárias herdadas da colônia nos bastidores do poder.
Essa persistência estrutural do paternalismo levou alguns autores a falarem em democracias de baixa qualidade ou mesmo em “Estados delegativos” no contexto latino-americano do século XX. O cientista político Guillermo O’Donnell (1994) cunhou o termo “democracia delegativa” para descrever regimes pós-ditatoriais na América Latina em que, embora existam eleições, o exercício efetivo do poder permanece altamente personalizado e concentrado no Executivo. Nesses casos, o presidente eleito governa de forma paternalista e pouco institucionalizada, enxergando-se como representante direto da nação e pouco respeitando os mecanismos de freios e contrapesos (legislativo, judiciário, partidos). Assim, muitas democracias latino-americanas funcionam quase como um continuum do histórico patrimonialismo: o povo delega autoridade ao líder numa eleição, e este passa a governar unilateralmente, buscando resultados rápidos e personalistas em vez de construir instituições sólidas. Segundo O’Donnell, na democracia delegativa o presidente é visto como “a encarnação do país, principal guardião e intérprete de seus interesses”, uma “figura paternal” autorizada a agir a seu critério em nome do povo. Esse comportamento ecoa o padrão colonial de autoridade, onde o governante-patrão decide e os demais obedecem. (O'DONELL, 1994)
Desse modo, mesmo nos períodos considerados democráticos, muitos países latino-americanos reproduziram elementos paternalistas. A participação popular ficou frequentemente limitada aos momentos eleitorais, enquanto a sociedade civil permanecia frágil e dependente do Estado. Políticos tradicionais agiam como “mediadores de favores” entre o Estado e a população, em vez de como representantes genuínos de demandas cidadãs. Essa limitação da democracia pela cultura paternalista foi analisada por vários autores. Guillermo O’Donnell (1994) argumentou que, nesses contextos, há baixa accountability (prestação de contas), enfraquecimento dos partidos políticos e marginalização de instâncias de participação efetiva. Em outras palavras, a democracia delegativa representa uma continuidade das práticas clientelistas e patrimoniais sob a forma de um regime eletivo.
Um exemplo concreto foi o caso do Peronismo na Argentina pós-1946, ou mesmo do Vargas no Brasil (segundo governo, 1951-54): embora ambos tenham chegado ao poder pelo voto popular em certos momentos, governaram de maneira personalista, cultivando uma relação direta com as massas e esvaziando em parte as instituições intermediárias. O Perón da primeira presidência (1946-1955) manteve o Congresso e a Constituição, mas sua influência pessoal e o culto à sua figura reduziram a autonomia de outras instituições – característica típica de um estilo paternalista-populista de governar. Já Getúlio Vargas, em seu segundo mandato eleito (1951-54), apesar de ter base partidária, governou cultivando a imagem de “pai dos pobres” e confiando mais em apelos diretos ao povo do que na negociação institucional com o Legislativo. Ambos os casos ilustram a dificuldade em se romper completamente com o personalismo estatal, mesmo em contextos formais de democracia.
2.3. Manifestações Contemporâneas do Paternalismo
Nas sociedades latino-americanas contemporâneas, o paternalismo manifesta-se de formas diversas, algumas vezes sutis, outras explícitas. Uma das manifestações mais discutidas é a tendência a implementar políticas públicas de cunho assistencialista de maneira vertical, sem promover o devido empoderamento da população beneficiária. Autores como Sônia Draibe (2003) analisaram as políticas sociais na América Latina e observaram que muitas assumem características paternalistas: em vez de emancipar os cidadãos da dependência, acabam reforçando relações de tutela, onde o Estado (ou o governante de plantão) fornece benefícios e a população os recebe passivamente. Por exemplo, programas de combate à pobreza que não são acompanhados de estratégias para autonomia (educação, geração de emprego) podem se tornar mecanismos de dependência política – utilizados por líderes para angariar apoio em troca de benefícios imediatos. Embora tais programas sejam essenciais para reduzir carências urgentes, o risco é perpetuar a ideia do Estado como “provedor caridoso”, com cidadãos-clientes em posição subalterna, em vez de cidadãos de direitos ativos.
Outro mecanismo contemporâneo de paternalismo é a figura do político populista paternal que se comunica com a população de forma infantilizadora. Em tempos de crise econômica ou social, é comum emergirem lideranças que se apresentam como “salvadores da pátria”, pedindo um voto de confiança para “resolver tudo” em nome do povo. Essa retórica concentra soluções no líder e desencoraja a organização autônoma da sociedade. Por exemplo, no contexto de instabilidade, setores da população podem buscar um líder forte que “coloque ordem na casa”, mesmo à custa de liberdades – o que reflete uma cultura política moldada pela tradição paternalista de buscar proteção numa figura de autoridade. Muitas campanhas eleitorais na região ainda exploram essa tendência, com candidatos prometendo ser “o pai do povo”, próximos “do cidadão comum” mas acima das instituições, reforçando assim a relação vertical líder-massa.
A cultura política latino-americana mostra traços dessa herança: pesquisas de opinião frequentemente revelam, de um lado, apoio abstrato à democracia, mas de outro, tolerância a soluções autoritárias ou personalistas em certas circunstâncias (como altas taxas de aprovação a “homens fortes” que “dêem um jeito no país”). José Álvaro Moisés (2008) identifica justamente essa contradição na sociedade brasileira contemporânea: convivência entre adesão a valores democráticos em discurso e práticas políticas cotidianas ainda marcadas pelo autoritarismo e pela personalização do poder. Isso se traduz, por exemplo, na dificuldade de fortalecer partidos programáticos (muita gente vota na pessoa, não na legenda) e na expectativa de que o eleito “faça tudo” sem muita participação popular contínua.
Adicionalmente, vale notar que mesmo o discurso público às vezes reforça papeis paternalistas. Expressões como “o governo vai dar tal benefício” ou “o presidente concedeu aumento de salário mínimo” sugerem uma dádiva graciosa da autoridade, em vez do reconhecimento de um direito ou resultado de pressão social organizada. Essa linguagem paternalista está entranhada na nossa maneira de ver a política, indicando o quanto a figura do Estado-pai ainda paira sobre o imaginário coletivo.
Por fim, no cenário contemporâneo, as mídias e tecnologias também podem amplificar práticas paternalistas ou personalistas. Líderes carismáticos utilizam a televisão e, hoje, as redes sociais para construir uma imagem de proximidade direta com o povo, dispensando intermediários. Se por um lado isso pode democratizar a comunicação, por outro pode ser empregado para cultivar dependência emocional nas massas – o líder se torna onipresente na vida cotidiana das pessoas, influenciando opiniões e apresentando-se como garantidor solitário do bem-estar geral. Dessa forma, o paternalismo político ganha novas roupagens, mas continua presente nas relações de poder, exigindo uma consciência crítica da sociedade para não recair em antigas armadilhas de subserviência e messianismo político.
3. O fenômeno político do populismo na América Latina
3.1. Conceituação e Características do Populismo Latino-Americano
O populismo na América Latina é um fenômeno político complexo e multifacetado, que combina elementos de inclusão democrática com traços autoritários e personalistas. De modo geral, o populismo é marcado pela mobilização de amplos setores populares – especialmente as massas urbanas e setores antes marginalizados – em torno de lideranças carismáticas que se colocam como representantes diretos do “povo” em oposição às “elites” ou ao establishment. Francisco Weffort (1978), ao estudar o caso brasileiro, definiu o populismo como uma resposta à crise da República Oligárquica (1889-1930), na qual se inicia a incorporação política das massas urbanas por meio de práticas populistas de líderes como Getúlio Vargas. Essa incorporação ocorreu “de cima para baixo”, isto é, dirigida pelo Estado e pelas lideranças, frequentemente em moldes paternalistas, já que o líder populista assume a posição de provedor de benefícios e intérprete das necessidades populares.
Uma característica central do populismo latino-americano é justamente essa personalização do poder político. No lugar de partidos fortes e instituições impessoais, prevalece o vínculo emocional entre líder e massas. Octavio Ianni (1975) aponta que o populismo na região, sobretudo em meados do século XX, representou uma forma específica de dominação que mesclava o tradicional e o moderno: por um lado, mobilizava sindicatos, meios de comunicação de massa e políticas públicas (elementos da modernidade); por outro lado, mantinha o personalismo e a concentração de poder típicos das formas tradicionais, onde a figura do líder é onipresente e arbitrária. Assim, apesar de convocar o povo à política, muitos governos populistas limitaram a autonomia das organizações populares, preferindo que estas orbitassem em torno do Estado e do líder carismático.
Em termos conceituais, o populismo tem sido definido de diferentes maneiras pelos estudiosos. Kurt Weyland, por exemplo, propõe entender o populismo como uma estratégia política por meio da qual um líder personalista busca ou exerce o poder com apoio direto e não institucionalizado das massas. Segundo Weyland (2001), “a melhor definição do populismo é como uma estratégia política, através da qual um líder personalista pretende ou exerce o poder governamental com base no apoio direto, sem mediação institucional, de um grande número de seguidores, em sua maioria não organizados”. Essa definição enfatiza três aspectos fundamentais:
- Liderança personalista: O protagonismo de um indivíduo (ou de um núcleo muito restrito) que concentra as decisões e se torna símbolo da vontade popular. A legitimidade vem mais de suas qualidades (carisma, oratória, identificação com o povo) do que de um programa partidário estável.
- Vínculo direto líder-massa: O líder populista comunica-se diretamente com a população, seja através de comícios, rádio/TV (no passado) ou redes sociais (atualmente), minimizando o papel de intermediários como partidos, congressos ou imprensa independente. As instituições representativas clássicas são frequentemente contornadas ou vistas como entraves.
- Discurso anti-elite e moralista: O populismo normalmente divide a sociedade em dois polos morais: “o povo puro, trabalhador, honesto” versus “a elite corrupta/exploradora”. O líder se apresenta como campeão dos interesses do povo e acusa as elites estabelecidas (oligarquias, oligarquia econômica, políticos tradicionais) de serem responsáveis pelos males nacionais. Essa retórica cria um forte apelo emocional e de identidade coletiva – o povo contra os privilegiados.
Além disso, o populismo latino-americano se caracterizou historicamente por um forte conteúdo nacionalista e reformista, ao menos em seu discurso. Líderes populistas prometeram resgatar a soberania nacional, promover o desenvolvimento econômico autônomo e incorporar as massas ao Estado, muitas vezes por meio de políticas sociais e trabalhistas. Esse aspecto fez com que alguns autores vissem no populismo uma forma de “democratização plebiscitária”, pois ele trouxe novas vozes para a arena política (operários, classe média baixa, camponeses migrantes urbanos) e implementou políticas de bem-estar antes inexistentes. Contudo, essa democratização era limitada: ocorria de forma controlada pelo alto, mantendo as estruturas de poder verticalizadas.
Importante ressaltar que o populismo não corresponde a uma ideologia fixa (como liberalismo ou socialismo). Na América Latina, houve populistas de diversos matizes ideológicos: nacional-desenvolvimentistas (Vargas, Perón), marcadamente de esquerda (Chávez no século XXI), de direita anti-comunista (como alguns veem Fujimori no Peru nos anos 1990, ou mesmo Jânio Quadros em sua retórica moralista no Brasil dos 1960) etc. O que une esses diferentes casos é mais o estilo político e a relação com as massas do que o conteúdo programático em si. Em todos eles, contudo, pode-se perceber a influência daquela cultura paternalista original: o líder populista frequentemente assume tons messiânicos de “pai” ou “guia” do povo, enquanto as massas, embora ativadas politicamente, muitas vezes se organizam menos de forma autônoma e mais seguindo o script oferecido pelo líder.
Resumindo as características-chave do populismo latino-americano, podemos elencar:
- Centralidade do líder carismático: figura “salvadora”, por vezes tida quase como infalível ou providencial.
- Discurso antielites e apelo ao povo: polarização nós (povo honesto) vs. eles (elites corruptas); promessa de restaurar a voz dos excluídos.
- Mobilização de massas: grandes comícios, festas cívicas, uso intenso de meios de comunicação, criação de uma conexão emocional com milhões de pessoas.
- Enfraquecimento de instituições intermediárias: partidos tradicionais, parlamentos e instituições são vistas como corruptas ou lentas; o líder apela direto à população, às vezes usando plebiscitos ou consultas diretas controladas.
- Concessões materiais e simbólicas às bases: implantação de direitos trabalhistas, aumentos de salário, subsídios ou serviços sociais visíveis, ao mesmo tempo em que cultiva-se a gratidão e lealdade política das bases por esses ganhos.
Esses elementos aparecerão nos exemplos históricos a seguir, variando em intensidade conforme o contexto nacional e a época.
3.2. Populismo Clássico e Desenvolvimentismo
O período entre as décadas de 1930 e 1960 é frequentemente identificado como a era do populismo clássico na América Latina. Nesses anos, vários países da região passaram por processos de industrialização e transformações sociais que favoreceram a ascensão de líderes populistas com projetos nacional-desenvolvimentistas. Tais líderes buscaram romper (ao menos em discurso) com as antigas oligarquias agrárias e promover a modernização econômica, ao mesmo tempo em que incorporavam trabalhadores urbanos e classes médias emergentes na política, forjando uma nova base de apoio popular.
Exemplos emblemáticos desse populismo desenvolvimentista incluem:
- Getúlio Vargas (Brasil) – líder da Revolução de 1930, governou de 1930 a 1945 (ditatorialmente a partir de 1937, no Estado Novo) e voltou pelo voto de 1951 a 1954. Vargas implementou a industrialização por substituição de importações, criou leis trabalhistas pioneiras (CLT, salário mínimo, direitos trabalhistas), instituiu ministérios e sindicatos atrelados ao Estado. Em troca, ganhou enorme apoio entre os trabalhadores urbanos, ganhando o apelido de “Pai dos Pobres”. De fato, a propaganda estatal da Era Vargas construía sua imagem como a de um benfeitor que ouvia as massas (através de órgãos como o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP) e as recompensava com benefícios sociais. Boris Fausto (2006) analisa que o varguismo combinou modernização econômica, legislação social e nacionalismo para integrar as massas ao projeto de Estado-nação. No entanto, apesar do tom paternalista e popular, Vargas mantinha um controle central forte – especialmente no Estado Novo, onde suprimiu partidos e liberdades políticas. Mesmo no período democrático pós-1945, Vargas manteve traços populistas: comunicava-se diretamente com o povo (como na famosa “Carta-Testamento” por ocasião de seu suicídio em 1954) e centralizava em si a resolução de conflitos entre capital e trabalho, diluindo a autonomia sindical.
- Juan Domingo Perón (Argentina) – líder militar que, com apoio sindical, tornou-se presidente (1946-1955) com um programa de industrialização e justiça social. Perón promoveu amplos direitos trabalhistas, nacionalizou empresas estratégicas e tinha em Eva Perón (“Evita”) uma importante ponte emocional com os descamisados (trabalhadores humildes). O Peronismo criou um forte vínculo de lealdade popular: milhões de trabalhadores veneravam Perón quase como um messias da classe trabalhadora. Seu governo incorporou sindicatos à estrutura estatal (corporativismo) e promoveu intensa propaganda enaltecendo-o. Novamente, vemos o padrão: benefícios materiais em troca de apoio político quase incondicional, e concentração de poder nas mãos do líder carismático. Perón enfrentou a elite agro-exportadora e a Igreja em certos momentos, consolidando um discurso de “povo vs. oligarquia”. Como consequência, o país viveu acirramento de tensões e Perón acabou deposto por um golpe militar em 1955, mas o peronismo permaneceu como força política e cultural na Argentina até hoje – uma evidência do impacto duradouro do populismo clássico.
- Lázaro Cárdenas (México) – presidente de 1934 a 1940, muitas vezes citado como exemplo de populismo de esquerda moderada. Cárdenas expropriou empresas estrangeiras de petróleo em 1938 (criando a Pemex), realizou reforma agrária distribuindo terras para camponeses (ejidos), promoveu sindicatos e foi extremamente popular entre as massas mexicanas. Embora o México já tivesse a Revolução de 1910 como referência, foi sob Cárdenas que o regime revolucionário ganhou contornos populistas nítidos: ênfase no nacionalismo econômico, integração dos camponeses e operários ao partido oficial (PRI) através de setores corporativos, e culto à personalidade do líder revolucionário. Cárdenas percorreu o país de trem ouvindo demandas populares – um estilo próximo do povo – e construiu a imagem de um governante paternal porém reformista.
Esses populismos clássicos estavam inseridos em um modelo de desenvolvimento conhecido como industrialização por substituição de importações (ISI). Como analisa a sociologia histórica de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (1970), esses países buscaram romper com a dependência das economias primário-exportadoras, incentivando a indústria interna e protegendo o mercado doméstico. Para viabilizar tal projeto, era crucial mobilizar os trabalhadores urbanos e setores nacionalistas da burguesia industrial nascente. Daí a aliança populista típica: Estado interventor + burguesia industrial nacional + classe trabalhadora urbana, sob mediação de um líder carismático. O Estado oferecia proteção e incentivos à indústria e ao mesmo tempo concedia melhorias salariais e direitos sociais aos trabalhadores, consolidando um bloco de apoio. Essa estratégia trouxe crescimento econômico e relativa melhoria social, mas não alterou significativamente a estrutura de desigualdade e concentração de renda; em muitos casos, as elites tradicionais agrárias foram deslocadas, mas novas elites industriais e burocráticas tomaram seu lugar, mantendo hierarquias sociais rígidas.
Alguns críticos argumentam que o populismo clássico tinha um caráter ambíguo: foi modernizador e includente em certo aspecto (trouxe massas à política e construiu economias mais diversificadas), porém autoritário e paternalista em seu modus operandi (pouca democracia interna, cooptação das organizações populares, personalismo). Autores como Octavio Ianni chegaram a denominar o populismo de “dominação bonapartista”, numa analogia com o bonapartismo descrito por Marx – onde um líder se coloca acima das classes, arbitra conflitos sociais concedendo algo a cada lado, mas ao fim preserva a ordem social básica.
No Brasil, o legado do populismo clássico varguista influenciou a política mesmo após a era Vargas. Presidentes posteriores dos anos 1950 e 60, como Juscelino Kubitschek e João Goulart, embora tivessem perfis distintos, operaram num ambiente ainda marcado pelo imaginário populista – expectativas de que o presidente orquestrasse o desenvolvimento e distribuísse benefícios. Com o golpe militar de 1964 no Brasil (e golpes semelhantes em outros países), os regimes autoritários cerraram as vias de expressão populista, mas incorporaram ironicamente certos elementos paternalistas (por exemplo, a ditadura brasileira criou programas sociais controlados para legitimação, como o PRONAB – Programa Nacional do Bem-Estar Rural – ou propagandas ufanistas apresentando os generais como “guardiões do povo”). Dessa forma, o populismo clássico deixou uma dupla herança: forjou identidades políticas populares (como o trabalhismo varguista, o peronismo argentino), mas não consolidou democracias estáveis, o que abriu caminho para crises institucionais que os militares aproveitaram.
3.3. Neopopulismo e Democracia Contemporânea
A partir dos anos 1980 – especialmente após o fim das ditaduras militares e a redemocratização em diversos países latino-americanos – observa-se o surgimento do que muitos pesquisadores chamam de neopopulismo. O neopopulismo retoma elementos centrais do populismo clássico (liderança personalista, apelo direto ao povo, discurso anti-establishment), porém adaptados ao novo contexto: economias globalizadas, predomínio de políticas neoliberais em certo período, mídias de massa (televisão) e, mais recentemente, mídias digitais, além do fato de ocorrer dentro de regimes formalmente democráticos (com eleições regulares e liberdades civis).
Nos anos 1990, a onda neoliberal atingiu a América Latina, e curiosamente alguns dos líderes que implementaram reformas de mercado se valeram de estratégias populistas para ascender ou se manter no poder – daí o termo “neopopulismo” às vezes se referir a populistas de feição neoliberal. Exemplos notáveis incluem:
- Carlos Menem (Argentina) – eleito presidente em 1989 com um discurso inicialmente tradicional peronista, rapidamente implementou políticas neoliberais (privatizações, abertura econômica) em contradição ao programa histórico do peronismo. Para obter apoio popular apesar das medidas duras (como combate à hiperinflação), Menem recorreu a um estilo personalista: concentrava poder na presidência, enfraquecia partidos (inclusive o seu), usava sua imagem midiática (cabelo longo, aparência “galã” popular), fazia aparições populistas no futebol e na TV. Ele literalmente “reinventou” a si mesmo como um campeão do povo que domou a inflação – e conseguiu reeleger-se em 1995. Kurt Weyland analisou casos como o de Menem e concluiu que populismo e liberalismo econômico podiam se combinar pragmaticamente naquele contexto. Ou seja, o populismo não estava mais vinculado apenas a políticas econômicas nacionalistas; tornou-se uma forma de liderança que podia servir a agendas diversas.
- Fernando Collor de Mello (Brasil) – eleito em 1989 como primeiro presidente pós-ditadura pelo voto direto, Collor apresentou-se como “caçador de marajás” (prometendo combater as elites burocráticas corruptas) e como um jovem moderno que enfrentaria a hiperinflação. Apesar de não ter um partido forte (foi eleito por uma coligação pequena) nem apoio inicial no Congresso, usou de massiva exposição midiática (era telegênico, fazia discursos emocionais à nação) para obter legitimidade direta. Sua política econômica foi também liberalizante (plano Collor com congelamento de ativos e abertura de mercado), mas ele tentava justificar as medidas difíceis com apelos patrióticos e a necessidade de sacrifício temporário pelo bem do povo. Collor governou de forma personalista e centralizadora, ignorando partidos e negociando pouco com o Legislativo – traços delegativos. Sua queda em 1992, por impeachment após denúncias de corrupção, mostrou os limites desse neopopulismo: sem uma base institucional sólida, perdeu rapidamente sustentação. Entretanto, a própria ascensão de Collor ilustrou a nova face do populismo: altamente mediático, focado em imagem (ficou famoso o uso de camisetas esportivas, corridas matinais filmadas, carros velozes – compondo uma persona de “herói do povo” jovem e dinâmico).
- Alberto Fujimori (Peru) – presidente de 1990 a 2000, é outro caso paradigmático. Fujimori era um candidato outsider que derrotou políticos tradicionais com discurso anti-sistema. Uma vez no poder, adotou políticas econômicas neoliberais severas (fujishock), ao mesmo tempo em que enfrentou grupos guerrilheiros (Sendero Luminoso) com mão de ferro. Em 1992, deu um “autogolpe”, fechando o Congresso e governando por decreto – consolidando um regime autoritário personalista com verniz plebiscitário (posteriormente fez referendos para aprovar nova Constituição que lhe era favorável). Fujimori utilizou muito a TV para propaganda governamental e tinha apoio de amplos setores populares urbanos cansados da violência e da inflação, que viam nele um “salvador”. Ele ilustra bem o conceito de neopopulismo plebiscitário: eleito democraticamente, ele corroeu a democracia por dentro, concentrando poderes e apelando diretamente ao povo para legitimar seus atos extraordinários, muitas vezes em detrimento das instituições.
A partir dos anos 2000, observa-se uma nova onda de populismo na América Latina, desta vez muitas vezes associada a lideranças de esquerda ou centro-esquerda que surgiram em reação às políticas neoliberais dos 90. Kenneth Roberts (2007) denomina esse fenômeno de “revival populista” ou re-popularização da política na região. Entre os exemplos mais conhecidos estão:
- Hugo Chávez (Venezuela) – eleito em 1998, governou até 2013. Chávez se inspirou em figuras como Perón e na ideologia bolivariana para conduzir uma “Revolução Bolivariana”. Seu governo combinou retórica feroz contra as elites tradicionais venezuelanas e contra influências estrangeiras (especialmente dos EUA) com um programa de redistribuição social financiado pela renda do petróleo. Chávez tinha um estilo extremamente plebiscitário: convocou uma nova constituição (1999), reeleições, inúmeros referendos e “consultas populares” para legitimar reformas. Ao mesmo tempo, concentrava cada vez mais o poder no Executivo, enfraquecendo a autonomia do Judiciário e do Legislativo. Utilizava as redes de TV e rádio (inclusive longos programas como “Aló Presidente”) para falar diretamente com a população horas a fio. Criou milícias populares e conselhos comunais para estimular a participação, mas esses mecanismos em grande parte respondiam à orientação do próprio Chávez, mantendo o verticalismo. Internacionalmente, Chávez tornou-se símbolo do neopopulismo latino-americano de viés socialista, aliado a Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador) etc. Seus críticos o acusam de instaurar um autoritarismo personalista, enquanto seus defensores apontam a inclusão social dos pobres antes excluídos. De todo modo, Chávez exemplifica o populismo do século XXI: nacionalista, anti-elitista, hiper-mediático e polarizador.
- Evo Morales (Bolívia) – presidente de 2006 a 2019, primeiro líder indígena do país, também assumiu um estilo populista ao refundar o Estado boliviano via Assembleia Constituinte, nacionalizar recursos (gás, petróleo) e mobilizar movimentos sociais indígenas e cocaleiros dos quais ele próprio emergiu. Morales governou com forte apoio popular e confronto constante com opositores internos e governos estrangeiros, personalizando o poder em torno de si (chegou a tentar um polêmico 4º mandato contrariando limites constitucionais).
- Líderes “antissistema” contemporâneos: Não apenas à esquerda; também houve populistas de direita ou de orientação ambígua mais recentemente: por exemplo, Andrés Manuel López Obrador (AMLO) no México (eleito 2018) com discurso contra “máfia do poder” e forte identificação popular; Jair Bolsonaro no Brasil (eleito 2018) frequentemente classificado como populista de direita por sua retórica anti-establishment, apelos diretos nas redes sociais e culto personalista; e Nayib Bukele em El Salvador (eleito 2019) que governa via Twitter, se colocando contra partidos tradicionais e concentrando poder sob pretexto de “vontade popular”.
O neopopulismo contemporâneo apresenta algumas características distintas do populismo clássico:
- Uso intensivo da mídia de massa e tecnologia: Os neopopulistas dominam técnicas de comunicação política modernas – do marketing televisivo à estratégia digital em redes sociais – para construir conexão direta com eleitorado. A imagem e o branding pessoal do líder são trabalhados profissionalmente.
- Personalização extrema e estilo “outsider”: Muitos surgem criticando a política tradicional, prometendo “nova política” ou fim da corrupção, o que lhes dá apelo em sociedades descontentes. Mesmo quando vêm de partidos estabelecidos, constroem narrativa de antagonismo à classe política como um todo.
- Instrumentos plebiscitários: Referendos, plebiscitos, consultas diretas ao povo via plataformas digitais, decretos referendários – tudo isso é usado tanto para legitimar medidas polêmicas quanto para consolidar a ideia de que o líder “governa ouvindo diretamente o povo”. No entanto, esses instrumentos às vezes servem para driblar debates em instituições representativas ou atropelar minorias, o que gera tensão com a democracia liberal.
- Ambiguidade ideológica: Enquanto o populismo clássico estava associado ao nacionalismo desenvolvimentista, o neopopulismo pode ter qualquer viés ideológico – o denominador comum é a forma, não o conteúdo. Assim, temos neopopulismo neoliberal (Menem, Fujimori), estatista de esquerda (Chávez, Morales), conservador/religioso (por ex., alguns apontam isso em Rafael Trujillo na R. Dominicana histórica ou atualmente em discursos moralistas na Guatemala), etc.
Os impactos do neopopulismo sobre a democracia são debatidos. Alguns autores, como Kurt Weyland ou Maxwell Cameron, argumentam que o neopopulismo tende a enfraquecer as instituições democráticas: ao concentrar poder no Executivo e deslegitimar o Legislativo e a imprensa, ele pode abrir caminho a governos autoritários (caso de Fujimori nos anos 90, ou a gradual erosão institucional na Venezuela chavista). Outros, porém, como Ernesto Laclau (teórico político argentino) e alguns defensores de Chávez, argumentam que o populismo pode ser uma forma de revitalizar a democracia, ao trazer pautas das maiorias excluídas e romper o engessamento das oligarquias. Kenneth Roberts (2007) coloca que o populismo pode tanto fortalecer quanto debilitar a democracia, dependendo de como lida com participação e accountability. Se criar novas formas de participação popular efetiva, pode oxigenar o sistema; se apenas mobilizar para endossar um líder, pode minar o pluralismo.
Podemos resumir dizendo que o populismo, em suas várias ondas, é um fenômeno recorrente na política latino-americana, revelando insatisfações populares com exclusão e injustiça, mas oferecendo soluções por vezes personalistas e de curto prazo. É como um círculo: surge da frustração com elites, mobiliza esperança nas massas em torno de um líder forte, gera mudanças (algumas positivas, outras questionáveis), mas frequentemente esbarra nos limites de concentrar poder demais em uma só pessoa ou grupo, levando a crises.
4. Reflexos do paternalismo e populismo na sociedade atual
4.1. Impactos na Cultura Política
As longas experiências históricas de paternalismo e populismo deixaram marcas profundas na cultura política latino-americana. Muitos dos comportamentos, expectativas e valores políticos presentes hoje em dia em países como o Brasil podem ser compreendidos à luz dessas heranças. Um primeiro reflexo notável é a persistência de uma mentalidade política paternalista, mesmo entre cidadãos comuns: ainda é comum parte da população enxergar governantes como figuras paternas ou messiânicas, das quais se espera proteção e providências, em vez de vê-los como meros representantes ou gestores sujeitos ao escrutínio cidadão. Essa disposição se manifesta, por exemplo, na demanda por líderes “fortes” ou no personalismo das campanhas eleitorais, onde o carisma e a imagem muitas vezes importam mais que programas ou ideologia.
José Álvaro Moisés (2008) observou que a sociedade brasileira convive com uma espécie de dualidade ou ambiguidade cultural: ao mesmo tempo em que há alto apoio declarado à democracia como valor (a maioria rejeita explicitamente uma volta da ditadura, por exemplo), sobrevivem atitudes autoritárias e personalistas no cotidiano político. Entre essas atitudes estão: tolerância a práticas clientelistas (aceitar trocar voto por favor, ou não ver problema em políticos distribuindo benefícios individualmente), tendência a concordar que “em certas situações um governo autoritário é melhor que a bagunça democrática”, baixa propensão à participação contínua (muitos votam e depois “deixam nas mãos” do eleito). Essas contradições vêm, em boa parte, da herança paternalista/populista que naturalizou relações verticais de poder e enfraqueceu a ideia de cidadania ativa. Ainda hoje, muita gente espera que o prefeito, o governador ou presidente “olhe pelo povo” quase como um pai olha pela família, em vez de encará-los como mandatários que devem ser fiscalizados de perto.
Culturalmente, também há reflexos na forma como nos relacionamos com as instituições. Em sociedades marcadas pelo personalismo, é comum haver desconfiança difusa nas instituições abstratas (leis, Congresso, partidos) e preferência por confiar em pessoas concretas. Assim, se um político novo surge prometendo moralizar e resolver problemas, tende a atrair seguidores mesmo que ignore as instituições – às vezes justamente por ignorá-las, visto que instituições são tidas como “ineficientes ou corruptas”. Essa anti-institucionalidade é em parte legado do populismo, que sempre criticou mediadores. O resultado pode ser perigoso: alimenta-se um ciclo de decepção com governos e políticos (porque expectativas messiânicas raramente se cumprem plenamente), o que gera mais descrédito institucional e abertura para salvadores de plantão.
Outra marca cultural é a personalização excessiva da política. O eleitor latino-americano médio tende a votar mais em indivíduos do que em propostas partidárias. Campanhas se estruturam em torno de candidatos carismáticos; partidos muitas vezes são fracos e personalistas (legendas de aluguel em torno de caciques regionais, algo muito claro no Brasil). Isso dificulta a formação de instituições mediadoras sólidas – como partidos programáticos, sindicatos independentes ou associações civis fortes – que são essenciais para qualquer democracia madura. A fraqueza dessas instituições, por sua vez, realimenta o terreno fértil para paternalismo e populismo: sem canais institucionais eficazes para reivindicar direitos (partidos, sindicatos), a população recorre a lideranças providenciais ou ao clientelismo para obter o que precisa.
Um exemplo concreto de como essa cultura afeta o cotidiano: ao invés de exigir políticas públicas estruturais, comunidades carentes às vezes preferem recorrer a um político conhecido solicitando favores (uma vaga num hospital, o asfaltamento da rua), pois essa foi a forma tradicional de conseguir melhorias – a política do favor personalista. Isso perpetua uma cidadania de baixíssima intensidade, onde muitos não se veem como titulares de direitos universais, e sim como pedintes de benesses individuais concedidas pelo poder público. Essa mentalidade de “favor em vez de direito” está ligada ao paternalismo histórico e ao cordialismo (personalismo) descrito por Sérgio Buarque de Holanda. Não por acaso, ele caracterizava o homem cordial como avesso às regras impessoais e inclinado a confundir público e privado – o que leva a situações em que, por exemplo, cidadãos não veem problema em políticos ajudarem amigos/parentes (afinal, é “lealdade” pessoal), mas não se mobilizam por princípios gerais de justiça ou impessoalidade Essa ética cordial dificulta o combate a práticas anti-republicanas como o nepotismo e a corrupção sistêmica, pois faltaria aquele senso de esfera pública como algo de todos, acima dos interesses pessoais.
Também na cultura política, nota-se a dificuldade de consolidar uma consciência crítica e autônoma em parte do eleitorado. Claro, isso vem mudando gradualmente com educação e movimentos sociais, mas historicamente regimes paternalistas e populistas não incentivaram a crítica – preferiram a adesão acrítica. Por exemplo, no Estado Novo varguista, difundiu-se a ideia de que “Getúlio sabe o que faz, ele pensa pelo povo”. No peronismo, “Perón conduz os descamisados”. Essas mentalidades levam tempo para serem superadas, mesmo após gerações. Até hoje, em alguns debates políticos, argumenta-se sobre líderes passados com paixão e devotamento, quase como figuras míticas, o que revela que para muitos a política ainda se personaliza em salvadores ou vilões, mais do que em ideias e sistemas.
Concluindo, a cultura política latino-americana atual carrega no seu subconsciente coletivo traços de paternalismo e populismo: a figura do “pai dos pobres” que muitos associam com governantes que dão assistência social; o messias político que surge a cada crise; o cidadão que prefere obedecer a regras informais de lealdade do que cobrar transparência institucional. Entretanto, é preciso enfatizar que essa não é toda a história – há também, na mesma cultura, valores democráticos e anseios por participação que crescem com a educação e a globalização de ideias.
4.2. Desafios para a Consolidação Democrática
Superar as heranças paternalistas e populistas constitui um dos maiores desafios para a consolidação plena da democracia na América Latina. A consolidação democrática, segundo teóricos como Juan Linz e Alfred Stepan (1999), não envolve apenas a existência de eleições regulares, mas requer a internalização de uma verdadeira cultura política democrática e o funcionamento efetivo de instituições estáveis, impessoais e respeitadas. Em outras palavras, uma democracia se torna consolidada quando todos os principais atores políticos – elites e população – passam a enxergar o regime democrático (com suas regras, limites e liberdades) como “a única regra do jogo” legítima, e quando a resolução de conflitos se dá dentro dos marcos institucionais, sem constantes riscos de rupturas.
No contexto latino-americano, entretanto, as práticas paternalistas e populistas tendem a enfraquecer alguns pré-requisitos dessa consolidação:
- Verticalidade versus Autonomia: Paternalismo e populismo promovem relações verticais (governante acima, povo abaixo) e heteronomia (as pessoas se habituam a receber ordens ou favores, em vez de agirem por si). Para consolidar a democracia, é preciso o oposto: cidadãos autônomos, que participem ativamente, e autoridades que prestem contas horizontalmente e verticalmente (aos eleitores). A tradição paternalista dificulta cultivar essa autonomia cidadã, pois muitos estão acostumados a não questionar o “patrão político” ou a resolver problemas por meios informais, minando a cultura da legalidade e da igualdade perante a lei.
- Instituições frágeis: O personalismo populista frequentemente solapa instituições como partidos, parlamentos e Judiciários independentes – seja por desuso (o líder decide tudo sozinho) ou por ataques diretos (acusando-os de “inimigos do povo”). Assim, a institucionalização da democracia fica capenga. Democracias consolidadas exigem partidos programáticos sólidos, sistema judiciário confiável, mídia livre, etc. Nos países onde populistas concentraram poder, nota-se depois dificuldade de recompor tais instituições. Mesmo no Brasil, após décadas de populismo e ditadura, a reconstrução institucional desde 1985 teve que lidar com caudilhos regionais, fisiologismo partidário e descrédito popular – fenômenos ligados àquele passado.
- Cultura autoritária residual: Como mencionado, muitos cidadãos podem ter valores democráticos só na superfície, mas manter preconceitos autoritários (como intolerância a minorias, crença em soluções de força para criminalidade, etc.). Linz e Stepan salientam que a consolidação requer lealdade à democracia tanto no comportamento quanto nas atitudes. A existência de uma cultura política democrática significa que mesmo diante de crises, as pessoas buscam soluções democráticas, não “atalhos” autoritários. A herança populista, porém, costuma oferecer esses atalhos: “se o Congresso atrapalha, fechemos o Congresso” – muitos populistas disseram ou fizeram isso. Assim, fica o desafio de educar politicamente a população para valorizar o pluralismo, o diálogo e os limites institucionais, mesmo quando estes parecem lentos ou frustrantes.
Outra questão é a tendência populista de reduzir a participação popular a momentos plebiscitários controlados (eleições, referendos), e não fomentar participação contínua e organizada. Consolidar a democracia implica ir além do voto: criar mecanismos para que a sociedade interfira no poder entre as eleições (através de conselhos, audiências, controle social, etc.) e para que haja accountability (os governantes respondam por seus atos legal e politicamente). No modelo delegativo-populista, muitas vezes não há abertura real para controle social – o líder se vê ungido pelo voto e acima de críticas até a eleição seguinte. Isso certamente conflita com o ideal de democracia responsável e transparente.
Ainda podemos falar do desafio da representação plural: populismos tendem a falar em nome de um povo uno, homogêneo, e demonizar opositores como traidores ou inimigos. Mas democracias consolidadas reconhecem a legitimidade da oposição e da diversidade de grupos de interesse. A herança populista nos dificulta aceitar o contraditório – é comum no debate político latino-americano a ideia de que discordar do líder popular é “trair o povo” ou “não querer que o país dê certo”. Essa lógica maniqueísta tem que ser superada para que possamos ter alternância de poder saudável e respeito mútuo entre campos políticos diferentes.
Por fim, há o desafio socioeconômico: paternalismo e populismo muitas vezes prosperaram em contextos de desigualdade e exclusão. Populações pobres, excluídas de direitos básicos, tornam-se mais vulneráveis ao "canto de sereia" de líderes providenciais ou à dependência de favores estatais, pois falta-lhes alternativas e poder de barganha. Assim, consolidar democracia também requer reduzir a desigualdade e fortalecer os direitos básicos, para que os cidadãos não fiquem à mercê de trocas clientelistas. Por exemplo, se todos têm educação, emprego e consciência de direitos, fica mais difícil que aceite trocar voto por cesta básica ou que deseje um autoritário para “por ordem”; preferirá usar canais legais para melhorar de vida. Portanto, desenvolvimento social e consolidação democrática andam juntos. Nesse sentido, eliminar o paternalismo assistencialista exige avançar para políticas sociais emancipadoras (que capacitem o cidadão) e para uma economia mais inclusiva – tirando o terreno fértil do messianismo político.
Em suma, o legado de paternalismo e populismo nos deixa a tarefa de reeducar nossas práticas e valores políticos. Como sintetizam Linz e Stepan, a consolidação democrática implica uma “habitação dupla”: a democracia deve se tornar hábito tanto nas instituições (comportamento das elites) quanto no coração dos cidadãos (cultura política). Livrar-se das velhas práticas de tutela e personalismo é condição sine qua non para que a democracia latino-americana deixe de ser um “jardim frágil” e se torne uma árvore de raízes robustas.
4.3. Resistências e Alternativas Democráticas
Apesar da persistência dessas práticas paternalistas e populistas, a América Latina vem testemunhando, especialmente desde a redemocratização das décadas de 1980-90, importantes processos de renovação democrática “pelo baixo”. Ou seja, há uma série de iniciativas e movimentos que buscam superar as limitações da democracia representativa tradicional e construir alternativas mais participativas, transparentes e horizontais – desafiando assim, na prática, a cultura paternalista.
Boaventura de Sousa Santos (2002) e outros autores falam em “inovações democráticas” na região. Entre os exemplos notáveis dessas alternativas democráticas, podemos citar:
- Orçamento Participativo (OP): Iniciado em Porto Alegre (Brasil) em 1989 e depois reproduzido em diversas cidades latino-americanas, o OP é um mecanismo pelo qual cidadãos comuns participam diretamente da definição de prioridades orçamentárias do município. Em assembleias nos bairros, a população decide onde investir parte dos recursos públicos (em saneamento, saúde, educação etc.). O sucesso de Porto Alegre – que integrou milhares de pessoas, reduziu a corrupção e melhorou serviços em áreas pobres – tornou-se referência mundial. Essa inovação quebra o paternalismo, pois ao invés do prefeito distribuir favores, são os moradores que deliberam sobre obras e fiscalizam sua execução. Trata-se de um exemplo concreto de autonomia popular em ação: os cidadãos deixam a posição de meros suplicantes e tornam-se co-gestores da coisa pública.
- Conselhos de Políticas Públicas: Muitos países (especialmente Brasil pós-1988) instituíram conselhos setoriais (de saúde, educação, assistência social, direitos da criança, meio ambiente etc.) compostos por representantes da sociedade civil e do governo. Esses conselhos deliberam sobre políticas, fiscalizam ações do Estado e ampliam a participação social de maneira institucionalizada. Nos conselhos de saúde, por exemplo, usuários do SUS, trabalhadores de saúde e gestores discutem juntos as prioridades do setor e monitoram os serviços. Assim, temas antes monopolizados por tecnocratas ou políticos abrem-se à influência direta de cidadãos organizados, reduzindo o distanciamento entre povo e poder.
- Legislação de Iniciativa Popular e Plebiscitos de Base: Embora líderes populistas usem plebiscitos de cima para legitimar agendas, também há consultas populares de base impulsionadas pela sociedade. Na década de 1990, ONGs e movimentos sociais no Brasil articularam plebiscitos populares (não oficiais) sobre temas como dívida externa e ALCA, estimulando debate e consciência crítica. Em outros países, referendos revogatórios ou constituintes foram usados com forte pressão popular (ex: Bolívia e Equador anos 2000, ainda que nesses casos sob liderança populista, houve grande mobilização autônoma indígena e sindical).
- Movimentos Sociais Autônomos: A região viu a emergência de novos movimentos sociais a partir dos anos 1980: movimentos de direitos humanos (exigindo justiça pelos crimes das ditaduras), movimentos indígenas (como o CONAIE no Equador ou o EZLN em Chiapas, México), movimentos de mulheres, ambientalistas, estudantis etc. Esses movimentos, em grande medida, questionam tanto as políticas excludentes quanto as práticas paternalistas. Por exemplo, o movimento Zapatista em Chiapas (1994) articulou comunidades indígenas em prol de autonomia e direitos, criticando tanto o neoliberalismo quanto a velha relação clientelista do PRI mexicano com camponeses. Da mesma forma, movimentos feministas contestam o patriarcalismo (que é um tipo de paternalismo nas relações de gênero) e reivindicam voz nas esferas de decisão, ampliando a democracia para dentro da sociedade.
- Experiências de Democracia Direta Local: Além do orçamento participativo, algumas cidades e comunidades experimentaram formas de auto-governo ou controle social bastante inovadoras. No Brasil, destacam-se os “conselhos gestores” e “fóruns de participação” em algumas prefeituras (como nos governos locais do Partido dos Trabalhadores nos anos 1990/2000, que criaram múltiplos espaços de diálogo com população). No Peru e outros países, algumas comunidades indígenas mantêm formas de democracia comunitária (assembleias comunais deliberativas) que ganharam reconhecimento legal nas novas constituições (por exemplo, Bolívia e Equador incorporaram conceitos de democracia comunitária e intercultural).
- Transparência e Tecnologia: Nos últimos anos, iniciativas de governo aberto e transparência pública visam empoderar cidadãos com informação para controle social. Ferramentas online permitem acompanhar gastos públicos, denunciar corrupção, propondo assim um engajamento cidadão mais ativo e informado – antídoto ao paternalismo opaco. Um cidadão que sabe onde o dinheiro público vai e que pode cobrar digitalmente seus representantes não precisa pedir favor a político; ele exige prestação de contas, mudando a relação de poder.
Boaventura de Sousa Santos (2002) argumenta que essas “democracias participativas” renovam o projeto democrático ao incluir os tradicionalmente excluídos e ao transformar a própria cultura política. Na perspectiva dele, a participação direta permite “àqueles deixados à margem serem incluídos no processo democrático, colaborando na definição da comunidade em que estão inseridos” (SANTOS, 2002), reforçando a democracia como projeto de inclusão social e inovação cultural. Em outras palavras, trata-se de democratizar a democracia – tornando-a mais profunda, mais cotidiana, e não limitada às estruturas representativas formais que muitas vezes se degeneraram em elitismo e clientelismo.
Essas experiências de participação têm obtido resultados diversos – algumas muito bem-sucedidas, outras enfrentando retrocessos ou cooptação. Mas de modo geral, elas indicam que há, na sociedade civil latino-americana, uma vitalidade democrática que resiste aos velhos esquemas. Por exemplo, no Brasil, apesar de ondas conservadoras recentes, existe uma forte rede de organizações não governamentais, coletivos comunitários e fóruns temáticos (de juventude, cultura, negras e negros, LGBTQIA+, etc.) que continuam atuando para exigir políticas públicas e ampliar direitos. Isso cria uma contra-corrente ao paternalismo: em vez de esperar tudo do Estado, grupos organizados pressionam e participam, reivindicando coautoria e controle.
Mesmo governos identificados como populistas em anos recentes tiveram que conviver com estruturas de participação institucional criadas anteriormente (por exemplo, conselhos nacionais no Brasil até 2019, antes de serem reduzidos) e com movimentos na rua (as jornadas de protesto de junho de 2013 no Brasil, os protestos no Chile em 2019 por nova Constituição, etc.). Esses movimentos sociais difusos mostram uma cidadania mais crítica, que não se enquadra facilmente na relação vertical líder-massa. Em certa medida, eles são herdeiros das lutas por democratização dos anos 1980, carregando adiante o projeto de uma democracia sem tutela.
Assim, embora paternalismo e populismo ainda marquem presença, não se pode ignorar as resistências democráticas que brotam. A história não é linear – há avanços e recuos – mas cada experiência participativa bem-sucedida deixa um aprendizado e fortalece a ideia de que os cidadãos podem e devem ser protagonistas na vida pública, e não meros coadjuvantes. Em última instância, essas alternativas ajudam a criar anticorpos na sociedade contra o autoritarismo: um povo acostumado a decidir e a deliberar dificilmente aceitará calado voltar à condição de tutelado. Esse é o horizonte de esperança para a democracia latino-americana.
5. Considerações finais
A análise histórica da formação dos Estados latino-americanos e brasileiros revela a persistência de uma forte herança paternalista, enraizada desde o período colonial e atravessando as diversas fases políticas – império, repúblicas oligárquicas, populismos, ditaduras e mesmo as democracias recentes. Essa herança manifesta-se na concentração personalista do poder, na confusão entre público e privado, no clientelismo e na tendência de se encarar o governante como um “patrão” ou “protetor” do povo, em vez de um delegado temporário da vontade popular. Combinado a isso, o fenômeno do populismo impregnou a cultura política latino-americana ao longo do século XX e início do XXI, oferecendo uma via de mobilização popular que, embora tenha trazido incorporação de massas e certo avanço social, também reproduziu mecanismos verticalizados de poder e a excessiva personalização da política.
Tanto em contextos autoritários (por exemplo, o Estado Novo no Brasil, ou regimes pessoais como o de Perón após 1949 na Argentina) quanto em contextos democráticos frágeis (as democracias delegativas do pós-Transição), a lógica paternalista-populista mostra seus efeitos ambíguos. Por um lado, líderes populistas quebraram estruturas oligárquicas exclusivistas, dando voz a setores antes marginalizados e implementando políticas de bem-estar importantes – caso de Vargas instituindo leis trabalhistas, ou Chávez reduzindo a pobreza na Venezuela na primeira década de 2000. Por outro lado, essas mesmas experiências frequentemente enfraqueceram instituições, limitaram a cidadania plena e, em casos extremos, pavimentaram o caminho para novos autoritarismos ou crises. A história mostra vários ciclos de personalização do poder seguidos de rupturas institucionais em nossos países, evidenciando a dificuldade de se construir democracias estáveis sobre bases populistas ou paternalistas.
Diante disso, para o fortalecimento da democracia, da cidadania e dos direitos humanos na América Latina, é fundamental desenvolver estratégias conscientes para superar essas heranças autoritárias e promover uma cultura política mais participativa e igualitária. Algumas direções fundamentais incluem:
- Educação para a Cidadania: Investir na formação crítica desde a educação básica. Na escola – especialmente no ensino médio – é possível discutir história e sociologia política do Brasil e América Latina, despertando nos jovens a compreensão de como funcionam as estruturas de poder e a importância de participação. A educação cidadã deve encorajar valores de autonomia, pensamento crítico, respeito às diferenças e compromisso com o bem comum, contrabalançando a tendência de sujeição cega à autoridade. Estudantes informados tendem a ser eleitores mais conscientes, menos suscetíveis a retóricas messiânicas ou troca de favores.
- Fortalecimento Institucional e do Estado de Direito: Trabalhar pelo aperfeiçoamento de partidos políticos programáticos, sistemas eleitorais representativos, imprensa livre e Judiciário independente. Isso inclui reformar o que for necessário para diminuir o personalismo (por exemplo, cláusulas anti-fidelidade partidária para impedir troca-troca excessivo de partidos no legislativo brasileiro, o que alimenta clientelismo). Um arcabouço institucional forte restringe os espaços para governantes de turno concentrarem todo poder. Também implica fomentar accountability – mecanismos de controle e transparência que tornem mais difícil o uso privado do público. Onde há lei e fiscalização atuantes, o patrimonialismo recua.
- Participação e Controle Social: Ampliar e proteger os espaços de participação já mencionados (conselhos, orçamento participativo, audiências públicas) e incentivar a sociedade civil organizada. Isso requer às vezes vontade política do próprio Estado em abrir-se ao diálogo, mas também pressão da sociedade. Quanto mais pessoas experimentam a deliberação coletiva e o controle social, mais internalizam a ideia de que a política nos pertence, e não a figuras providenciais. Assim, forma-se uma cultura de co-responsabilização, antídoto ao paternalismo.
- Promoção do Pluralismo e Tolerância: Combater a retórica do “inimigo interno” e do divisionismo social. Nas escolas, na mídia e nos discursos, enfatizar a legitimidade da oposição, a necessidade de convivência democrática entre posições divergentes. Isso enfraquece narrativas populistas que se alimentam do ódio ao outro grupo. Uma sociedade plural tende a exigir debates programáticos e soluções negociadas, frustrando projetos de poder personalistas que dependem de polarização extrema.
- Redução da Desigualdade: Continuar buscando justiça social – com crescimento econômico inclusivo, distribuição de renda, serviços públicos universais de qualidade. Quanto mais cidadãos estiverem integrados com dignidade (emprego, renda, educação, saúde), menos propensos estarão a se submeter a relações clientelistas para sobreviver. Ou seja, erradicar o paternalismo assistencialista passa por assegurar direitos básicos como algo universal e impessoal. Políticas de transferência de renda, por exemplo, devem ser tratadas não como favor do governante, mas como política de Estado com critérios claros – e acompanhadas de portas de saída pela via do emprego e da educação, para emancipar beneficiários.
Em perspectiva, o papel da Educação Básica – e aqui enfatiza-se o ensino médio – é realmente crucial nesse processo de mudança. Numa aula de história ou sociologia sobre paternalismo e populismo, jovens cidadãos podem aprender a identificar e questionar práticas políticas paternalistas (por exemplo, reconhecer quando um político local está agindo como “coronel” ou quando uma política pública carece de participação) e práticas populistas (saber diferenciar um discurso que manipula emoções daquele que apresenta propostas factíveis, por exemplo). Munidos desse conhecimento, os estudantes tornam-se capazes de recusar passivamente a posição de tutelados e de exigir respeito como cidadãos de direitos.
Ao longo do tempo, espera-se que essas novas gerações ajudem a consolidar no Brasil e na América Latina uma democracia mais madura, em que fenômenos como o “sebastianismo político” (a espera por um salvador) deem lugar à crença na construção coletiva; em que o “jeitinho” e o favor sejam substituídos pelo direito garantido e pela política pública planejada; e em que, consequentemente, os direitos humanos – à vida, à liberdade, à igualdade, à participação – sejam plenamente realizados, não dependendo da boa vontade de governantes de plantão, mas assegurados por toda a sociedade.
Em síntese, paternalismo e populismo foram importantes para moldar nossa trajetória histórica, mas não precisam definir nosso futuro. Conhecer esses fenômenos, com base em estudos acadêmicos e exemplos concretos, nos dá ferramentas para não repetir erros e para fortalecer os acertos rumo a sociedades mais autônomas, justas e democráticas.
Como referenciar este texto:
Blog do Lab de Educador. Paternalismo e populismo na formação dos estados latino-americanos: reflexões nas relações de poder e na sociedade contemporânea. Zevaldo Sousa. Publicado em: 04/08/2025. Link da Postagem: https://blog.labdeeducador.com.br/2025/08/paternalismo-e-populismo-na-formacao-dos-estados-latinoamericanos.html. {codeBox}
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