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Manaus - A capital do Amazonas |
Por Zevaldo Sousa
A Amazônia é uma região de contrastes marcantes, onde metrópoles emergem em plena floresta e modos de vida tradicionais convivem com pressões da modernidade. Manaus, capital do Amazonas, ilustra bem esses desafios: uma cidade de cerca de 2 milhões de habitantes cercada pela maior floresta tropical do mundo, enfrentando profundas desigualdades socioespaciais. Neste contexto, questões como ordem vs. conflito nas cidades, lugares de pertencimento vs. não-lugares, disputas urbanas entre o público e o privado, e conflitos rurais envolvendo agronegócio, povos tradicionais e sustentabilidade, tornam-se centrais para entender os desafios amazônicos contemporâneos. Abordaremos esses temas de forma acessível, porém rigorosa, conectando referências teóricas e exemplos locais (Manaus e interior do Amazonas) para instigar a reflexão crítica dos estudantes.
Ordem e Conflito nas Cidades Amazônicas
As cidades são frequentemente vistas como espaços que demandam ordem – planejamento urbano, leis, controle estatal – mas, na prática, são palco constante de conflitos sociais. O geógrafo Milton Santos já afirmava que o espaço urbano é um produto social coletivo, resultado de relações e contradições da sociedade (SANTOS, 1996). Nas metrópoles amazônicas como Manaus, essas contradições ficam evidentes: regiões centrais modernizadas coexistem com extensas áreas periféricas de ocupação informal. Mais da metade dos domicílios de Manaus (53,9%) localiza-se em favelas ou assentamentos precários, segundo dados do Censo 2022 (BNC Amazonas, 2024). Ou seja, a “cidade formal” e ordenada convive lado a lado com a “cidade informal”, muitas vezes à margem dos serviços públicos.
Nesse sentido, Santos (1996) cunhou a expressão “a periferia está no centro e o centro está na periferia”, indicando que, em cidades desiguais, bolsões de privilégio e de exclusão se interpenetram espacialmente. David Harvey, importante teórico urbano, defende que conflitos urbanos não são necessariamente algo a ser eliminado – pelo contrário, “o conflito na e pela cidade é saudável, e não uma patologia que o Estado deva suprimir” (UNISINOS, 2013). Conflitos dão voz às demandas dos cidadãos (por moradia, por serviços, por reconhecimento) e impulsionam mudanças, fazendo valer o direito à cidade pelos seus habitantes.
Em Manaus, por exemplo, a busca pela ordem urbana às vezes entra em choque com as necessidades reais da população. A expansão de bairros em áreas de invasão, a ocupação de calçadas por vendedores ambulantes e as moradias improvisadas às margens de igarapés representam a população criando soluções informais onde o planejamento oficial falhou. Entre 2015 e 2019, registraram-se centenas de ocupações irregulares de terra na cidade, reflexo do déficit habitacional e da migração interna. As tentativas do poder público de remover ou regularizar essas ocupações costumam gerar conflitos acirrados entre moradores (lutando pelo direito à moradia) e autoridades (buscando impor a lei e a ordem). Trata-se de um embate entre a cidade “legal” e a cidade “real”: de um lado, leis e planos diretores; de outro, a sobrevivência cotidiana de quem ocupou um terreno por não ter alternativa. Nesse cenário, ordem e conflito andam juntos, revelando as fraturas sociais na paisagem urbana.
Lugares de Pertencimento vs. Não-Lugares na Amazônia
No coração desses debates está a distinção entre lugares e não-lugares, conceitos popularizados pelo antropólogo francês Marc Augé. Lugares de pertencimento são espaços carregados de identidade, memória e relações humanas — por exemplo, o bairro onde crescemos, a praça onde a comunidade se reúne, a aldeia indígena com sua organização própria. Já os não-lugares são espaços de transitoriedade e anonimato, típicos da chamada “supermodernidade”: aeroportos, shopping centers, rodoviárias, redes de fast-food, estradas etc., onde pessoas circulam sem criar laços ou memórias duradouras . O que inquietava Augé era ver uma “rápida substituição dos lugares pelos não-lugares, tornando a cidade cada vez mais um espaço de anonimato e solidão”, em que a liberdade individual de ir e vir prevalece sobre os significados compartilhados em comunidade (AUGÉ, 2009).
Em outras palavras, quando frequentamos um shopping padronizado ou transitamos por um aeroporto, somos consumidores anônimos em um cenário genérico – poderíamos estar em Manaus ou em qualquer outra cidade do mundo, seria quase igual. Diferentemente, quando estamos em um lugar de pertencimento (como um mercado municipal tradicional, um centro cultural local ou nossa comunidade ribeirinha), sentimos uma conexão com a história, com as pessoas ao redor e com a identidade daquele espaço.
Na Amazônia, essa tensão entre lugares e não-lugares ganha contornos particulares. Por um lado, a globalização trouxe à Manaus e a outras cidades amazônicas elementos de “não-lugar”: grandes redes de lojas, franquias de fast-food, centros comerciais climatizados que contrastam com o ambiente tropical. Um exemplo é o próprio shopping center que substitui a praça pública como local de lazer – ambiente privado, vigiado, igual em qualquer cidade, sem caráter local. Muitos jovens manauaras são obrigados a ir ao shopping, pois muitos bairros não possuem uma praça, vivenciando, portanto, uma sociabilidade mediada pelo consumo e pela segurança privada.
Por outro lado, a Amazônia mantém muitos lugares de pertencimento vivos: as feiras livres onde produtores do interior vendem farinha e açaí e conversam com mais intimidade, as comunidades ribeirinhas e indígenas que estruturam seu espaço de acordo com tradições ancestrais. Augé observa que quando intervenções externas redesenham esses espaços tradicionais, o sentido de lugar pode se perder. Ele cita, por exemplo, o caso clássico de uma aldeia Bororo no Brasil Central: missionários reorganizaram as casas circulares em linha reta, rompendo a lógica espacial da aldeia, o que fez com que os Bororo “perdessem o sentido de suas tradições e de sua própria cultura” (AUGÉ, 2009). Em suma, a forma como o espaço é organizado importa — e muito — para a identidade social e cultural e para a preservação da nossa identidade.
Em Manaus, poderíamos pensar: a orla da Ponta Negra revitalizada é um lugar de pertencimento (onde famílias manauaras passeiam, praticam esporte e celebram o pôr do sol no rio Negro) ou tornou-se um não-lugar (um cartão-postal para turistas, padronizado e segmentado)? E os conjuntos habitacionais populares construídos longe do centro, sem infraestrutura adequada – seriam “não-lugares” desprovidos de referências culturais, ou conseguem se transformar em comunidades unidas e cheias de pertencimento conforme os moradores criam ali suas vidas? Essas perguntas nos levam a refletir sobre o impacto das transformações urbanas na Amazônia: a modernização pode melhorar a qualidade de vida, mas também pode diluir características locais. Augé alerta que nos não-lugares acabamos virando meros “espectadores solitários” de um espaço sem vínculos (AUGÉ, 2009). O desafio está em encontrar um equilíbrio, aproveitando o progresso sem perder de vista a identidade cultural e o sentimento de comunidade que fazem um lugar ser único.
Conflitos Urbanos: Espaço Público em Disputa
A vida urbana na Amazônia traz também conflitos em torno do uso do espaço público. Ruas, praças e calçadas, em teoria, pertencem a todos – são o palco da vida coletiva na cidade. No entanto, na prática, há uma disputa constante entre o público e o privado nesses espaços. De um lado, a população (especialmente os mais pobres) apropria-se do espaço público para atender necessidades básicas: camelôs montam suas bancas nas calçadas para ganhar a vida, famílias ocupam terrenos vazios erguidos pelo Estado para construir moradias, crianças brincam nas ruas onde faltam opções de lazer, moradores de rua ocupam o banco da praça por falta de moradia. De outro lado, agentes privados (comércios, empresas, elites) e até o poder público muitas vezes privatizam ou restringem o acesso a esses espaços, visando lucro ou “segurança”. Em Manaus, é comum observar calçadas e praças sendo usadas de forma privada, seja por vendedores informais montando barracas, seja por estabelecimentos comerciais estendendo mesas e estacionamentos onde deveria ser passagem. Curiosamente, não é só nas áreas pobres que isso ocorre: segmentos abastados e até órgãos públicos também ocupam indevidamente áreas públicas (FARIAS e LIMA, s/d). Por exemplo, condomínios que fecham ruas, postos de gasolina que invadem calçadas, eventos privados que cercam praças para cobrar ingresso – tudo isso evidencia a tensão entre o direito coletivo à cidade e os interesses particulares.
Um efeito perverso dessa dinâmica é a “cidade ilegal” mascarada de legal: práticas cotidianas que fogem às leis urbanísticas acabam se normalizando. Há um fosso entre o que as leis (como o Plano Diretor de Manaus) preveem e a realidade nas ruas (FARIAS e LIMA, s/d). Enquanto a lei diz que todos devem ter acesso às calçadas e praças, na realidade muitas dessas áreas são negociadas, ocupadas ou mesmo controladas por grupos específicos. Isso gera conflitos: remoção de feiras de rua pela prefeitura gera protestos dos feirantes; fiscalização de ocupações em calçadas gera atrito entre ambulantes e guardas municipais; moradores de rua são expulsos de praças revitalizadas para “valorizar” a área – e assim por diante. A luta pelo direito à cidade aparece nessas micro-batalhas: quem pode usar o espaço urbano e de que forma?
A violência urbana também reforça essa disputa público/privado. Por exemplo, diante da criminalidade e da sensação de insegurança, as classes médias e altas tendem a se refugiar em espaços privados protegidos – condomínios fechados, shopping centers, carros blindados – abrindo mão dos espaços públicos da cidade. Essa “fuga” contribui para a privatização do espaço público: parques e praças ficam abandonados ou são entregues a concessionárias privadas, enquanto o convívio se desloca para ambientes controlados e vigiados. Manaus, assim como outras capitais, viu proliferar shoppings que viraram as “novas praças” da cidade, porém acessíveis de fato apenas a quem pode consumir. Há uma aura de segurança e conforto nesses locais, em contraste com certas ruas que, à noite, esvaziam-se devido ao medo da violência. Como destaca Harvey, há uma exclusão implícita nessa lógica urbana contemporânea: “há uma aura de liberdade de escolha de serviços, lazer e cultura – desde que se tenha dinheiro para pagar” (HARVEY, 2013). Ou seja, a cidade oferece espaços de qualidade, porém muitas vezes mercantilizados, aprofundando desigualdades. Prova disso é que Manaus figura entre as cidades brasileiras com mais moradores em favelas, mas também ostenta shopping centers modernos e condomínios de luxo – dois universos opostos compartilhando a mesma metrópole.
Os dados recentes do IBGE ilustram essa disparidade urbana: seis dos 20 maiores aglomerados de favela do Brasil estão em Manaus (CENARIUM, 2024), incluindo a comunidade Cidade de Deus/Alfredo Nascimento (zona norte) com 55 mil moradores, a quarta maior favela do país. No total, 53,9% da população de Manaus reside em aglomerados subnormais (favelas), e 34,7% da população do estado do Amazonas vive nessas condições – a maior proporção do país.
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Fonte: Censo Demográfico 2022, IBGE |
Essas áreas carecem de infraestrutura básica: cerca de 55 mil domicílios favelados no estado não possuem abastecimento de água encanada, por exemplo. Esses números revelam que grande parte da população é privada do “direito à cidade” pleno – vivendo em zonas onde faltam saneamento, transporte, segurança, e sofrendo preconceito espacial (estigmatização das favelas).
Segundo Luan Rezende, da seção de disseminação de informações do IBGE Amazonas, "O conceito de favela para o IBGE são áreas com domicílios em situação de insegurança jurídica de posse, e que tenha pelo menos mais uma das três características: ausência ou oferta incompleta e/ou precária de serviços públicos; predomínio de edificações, arruamento e infraestrutura autoproduzidos ou distintos dos definidos pelos órgãos públicos; ou localização em áreas com restrição à ocupação definidas pela legislação ambiental ou urbanística", explicou. (CENARIUM, 2024),
A resposta muitas vezes tem sido isolar essas zonas ou reprimi-las (caso de intervenções policiais violentas em áreas periféricas), ao invés de integrá-las. Surge assim o dilema: a quem pertence a cidade? Apenas a quem se encaixa na ordem formal, ou a todos que a constroem com seu trabalho e cultura? A disputa entre público e privado em Manaus é, no fundo, a disputa por um modelo de cidade: ou uma cidade excludente, fragmentada em nichos privados e “não-lugares”, ou uma cidade inclusiva, onde o espaço público seja realmente de todos.
Conflitos Rurais: Agronegócio, Povos Tradicionais e Sustentabilidade
Se nas cidades amazônicas os conflitos giram em torno do espaço urbano, no campo os conflitos explodem em torno da terra e dos recursos naturais. O estado do Amazonas, conhecido por sua vasta cobertura florestal, vive atualmente tensões crescentes entre a expansão do agronegócio, os direitos das comunidades tradicionais (indígenas, ribeirinhos, quilombolas) e a necessidade de sustentabilidade ambiental. Nos últimos anos, a fronteira agrícola tem avançado sobre áreas antes preservadas no sul do Amazonas, processo impulsionado por grileiros (posseiros ilegais), madeireiros e fazendeiros que veem na floresta oportunidades de lucro – seja pela extração de madeira, criação de gado ou plantio de soja. Dados de monitoramento satelital mostram que, em 2024, o Amazonas foi o segundo estado que mais desmatou na Amazônia, perdendo 820 km² de floresta (pouco menos apenas que o Pará). Chama atenção que os dois municípios campeões de desmatamento na Amazônia em 2024 foram Lábrea (134 km² desmatados) e Novo Aripuanã (119 km²), ambos no sul do Amazonas, na divisa com Acre e Rondônia (IMAZON, 2025). Essa região, conhecida como AMACRO (é um acrônimo que designa uma região na Amazônia brasileira, na divisa entre os estados do Amazonas, Acre e Rondônia), tornou-se um hotspot de devastação ambiental e conflitos fundiários.
A expansão da fronteira agropecuária traz consigo violência no campo. Conforme relatório da Comissão Pastoral da Terra, somente na região AMACRO ocorreram 200 conflitos agrários em 2023, incluindo expulsões forçadas e confrontos, e 8 pessoas foram assassinadas – parte de um total de 31 mortes em conflitos de terra registradas no país naquele ano. Um caso emblemático é o da Comunidade Marielle Franco, um assentamento de trabalhadores rurais em Lábrea (AM). Formada em 2015 por cerca de 200 famílias sem-terra, essa comunidade ocupa uma área de 18 mil hectares – terras públicas almejadas tanto para reforma agrária quanto por fazendeiros da região. Em 2024 e início de 2025, a comunidade virou cenário de ameaças e ataques armados ligados a um fazendeiro local que alega posse de parte da área. Jagunços a serviço da Fazenda Palotina, do latifundiário Sidnei Sanches Zamora, passaram a cercar e agredir os moradores, numa tentativa violenta de expulsão. Em janeiro de 2025, dois coletores de castanha foram assassinados nas imediações – casos de José Jacó Cosotle, 55 anos, encontrado com marcas de tiro, e de Francisco “Cafu” Nascimento. Relatos apontam que seguranças privados destruíram barracos e expulsaram famílias do acampamento de forma brutal, sem mandado judicial, ferindo inclusive mulheres e crianças Diante disso, os camponeses bloquearam a BR-317 em protesto, forçando autoridades a mediar o conflito – ainda assim, vivendo sob tensão constante (Amazônia Real, 2025) . Esse episódio local exemplifica um padrão de conflitos rurais na Amazônia: de um lado, povos tradicionais e pequenos agricultores tentando assegurar seu pedaço de terra e manter modos de vida sustentáveis (coleta de castanha, cultivo de subsistência); de outro, grandes proprietários e empresas impondo a lógica do agronegócio, muitas vezes à margem da lei, com uso da força e da influência política.
As consequências desses conflitos vão além da questão fundiária – abarcam dimensões sociais, culturais e ambientais. No aspecto social, os indicadores mostram vulnerabilidade extrema no interior: no vale do rio Purus (sul do AM), por exemplo, cerca de 66,6% da população vive abaixo da linha da pobreza (menos de R$665 por mês), o maior índice de pobreza extrema de todo o Brasil (BNC Amazonas, 2025). Ou seja, apesar da exploração dos recursos naturais, a riqueza não beneficia as comunidades locais, que permanecem pobres. Ao contrário, muitas vezes a chegada do agronegócio desarticula economias tradicionais (pesca, extrativismo, agricultura familiar) e provoca êxodo rural, aumentando a favelização nas cidades. Culturalmente, povos indígenas e comunidades ribeirinhas vêem seus territórios tradicionais ameaçados – áreas de caça, coleta e significado espiritual são derrubadas e cercadas. Ambientalmente, o desmatamento e as queimadas associadas ao avanço agropecuário causam perda de biodiversidade, emissões maciças de carbono e desequilíbrios climáticos. Em 2024, embora o desmatamento na Amazônia Legal tenha caído em relação aos picos recentes, a degradação florestal (incêndios e exploração madeireira predatória) aumentou quase 500% em comparação a 2023 (IMAZON, 2025), muito disso concentrado no sul do Amazonas e Pará. Esses números acendem um alerta: como conciliar o “progresso” econômico com a sustentabilidade?
De um lado, o agronegócio defende a expansão da fronteira agrícola como fonte de riqueza, empregos e produção de alimentos. De outro lado, ambientalistas e comunidades tradicionais argumentam que a Amazônia possui vocação para uma economia florestal sustentável – como extrativismo de produtos não madeireiros (castanha, borracha, óleos), turismo ecológico, manejo comunitário – que gera renda conservando a floresta em pé. Essa oposição reflete uma questão maior, apontada pelo próprio David Harvey em suas análises do capitalismo global: o que ocorre na Amazônia é um processo de “economia de espoliação”, em que capitais privados se apropriam de bens comuns (terra, madeira, minérios) expropriando populações locais e degradando o meio ambiente (HARVEY, 2014). É uma repetição contemporânea da lógica colonial de extrair recursos para lucro de poucos, deixando os custos sociais e ambientais para a sociedade. A busca por soluções passa necessariamente por políticas públicas que protejam os direitos fundiários dos povos tradicionais (aplicando a Constituição que garante terras indígenas e quilombolas, por exemplo), reprimam a grilagem e o desmatamento ilegais, e incentivem modelos econômicos sustentáveis na região. Iniciativas como projetos de Assentamentos Agroextrativistas, Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) e manejo florestal comunitário mostram que é possível gerar renda mantendo a floresta – mas essas iniciativas precisam de apoio e escala.
Outro caminho importante é o fortalecimento da sociedade civil local na defesa de seus territórios. Assim como nas cidades o conflito pode ser saudável para reivindicar direitos, no campo os movimentos de trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e ambientais cumprem o papel de resistência. Quando comunidades se unem para denunciar invasões (contando com apoio de organizações como a CPT, o ISA e veículos independentes como Amazônia Real), elas trazem visibilidade e pressionam por ações das autoridades. Ainda há muitos desafios – impunidade em crimes no campo, projetos de infraestrutura (rodovias, hidrelétricas, mineração) planejados sem consulta às comunidades, e as mudanças climáticas que agravam secas e enchentes na região. Mas o futuro da Amazônia dependerá de como esses conflitos serão resolvidos: pela via da violência e imposição, ou pela via do diálogo, da justiça social e do respeito ambiental.
Conclusão
Percorremos, neste texto, questões interligadas do espaço amazônico – das ruas de Manaus às florestas do interior. Vimos que ordem e conflito são duas faces inseparáveis da realidade urbana: a ordem desejada muitas vezes gera conflitos quando ignora as demandas populares, mas é através do conflito que grupos marginalizados conquistam seu lugar na cidade. Discutimos também o contraste entre lugares de pertencimento, ricos em identidade, e os não-lugares da modernidade que homogenizam as experiências; este dilema está presente na Amazônia, exigindo um olhar crítico para que o desenvolvimento não apague a diversidade cultural. Nos conflitos urbanos, identificamos a disputa constante entre o interesse público e privado pelo controle do espaço – um reflexo das desigualdades socioeconômicas profundas que fazem de Manaus uma cidade partida entre a modernidade e a precariedade. E, finalmente, exploramos os conflitos rurais, onde está em jogo o modelo de desenvolvimento da região: a expansão agroindustrial e mineradora confronta os modos de vida tradicionais e a integridade da floresta, levantando a urgente pergunta sobre sustentabilidade e justiça social.
Entender esses fenômenos é fundamental para a juventude amazonense e brasileira, pois deles depende o futuro das nossas cidades e florestas. Como nos lembra Milton Santos, o espaço não é um mero palco inerte – ele é vivo, produto das ações humanas, e também condiciona as possibilidades da vida em sociedade. Cultivar uma visão crítica sobre o espaço é, portanto, um passo para transformá-lo de forma mais justa. Se a Amazônia hoje enfrenta enormes desafios, também oferece ao mundo lições de resistência e criatividade: das ocupações urbanas que reinventam a cidade de baixo para cima, às comunidades tradicionais que manejam recursos de forma sustentável há gerações.
Fica, então, o convite ao debate e à reflexão: será possível harmonizar o desenvolvimento econômico com a preservação dos “lugares de pertencimento” e dos direitos dos povos da Amazônia, construindo um futuro que concilie ordem e justiça socioambiental? 📚💭
Como referenciar este texto:
Blog do Lab de Educador. Entre a Cidade e a Floresta: Ordem, Conflito e (Não) Lugares na Amazônia. Zevaldo Sousa. Publicado em 14/09/2025. Disponível em <https://blog.labdeeducador.com.br/2025/09/entre-cidade-e-floresta-ordem-conflito-e-nao-lugares-na-amazonia.html>. {codeBox}
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Referências:
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AMBROSIO, Nicoly. Conflito agrário: mais um assassinato na comunidade Marielle Franco. Amazônia Real, 30 jan. 2025. Disponível em: <https://amazoniareal.com.br/conflito-agrario/>. Acesso em: 12 set. 2025.
AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade. Europress, 2009.
CENARIUM. Seis das 20 favelas mais populosas do País estão em Manaus. saiba quais sãoDisponível em <https://agenciacenarium.com.br/seis-das-20-favelas-mais-populosas-do-pais-estao-em-manaus/>. Acesso em 14 set. 2025.
FARIAS, Samara Lima; LIMA, Marcos Castro de. A utilização do uso dos espaços públicos em Manaus e a produção deste espaço urbano de forma legal e ilegal. Disponível em <https://riu.ufam.edu.br/bitstream/prefix/4568/2/Samara%20Lima%20Farias.pdf>. Acesso em 14 set. 2025.
HARVEY, David. O direito à cidade. Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-direito-a-cidade/>, Edição 82, Julho 2013. Acesso em: 12 set. 2025.
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IMAZON – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia. Amazônia fecha 2024 com queda de 7% no desmatamento, mas alta de 497% na degradação. Belém: Imazon, 2025. Disponível em: <https://imazon.org.br/imprensa/amazonia-fecha-2024-com-queda-de-7-no-desmatamento-mas-alta-de-497-na-degradacao/>. Acesso em: 12 set. 2025.
PINHEIRO, Adríssia. Manaus continua com duas das maiores favelas do país, revela IBGE. BNC Amazonas, 24 jul. 2025. Disponível em: <https://bncamazonas.com.br/municipios/manaus-continua-com-duas-das-maiores-favelas-do-pais-revela-ibge/>. Acesso em: 12 set. 2025.
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