Justiça e Direito das Mulheres: uma análise sociológica

Justiça e Direito das Mulheres: uma análise sociológica

Ao longo da história, o papel da mulher nas sociedades foi moldado por estruturas de dominação patriarcal que negaram direitos, silenciaram vozes e naturalizaram desigualdades. Essa organização social do gênero, conforme analisa Scott (1995), institui o masculino como universal e o feminino como subordinado, afetando diretamente as formas de acesso à justiça e aos direitos fundamentais. Ainda hoje, os ecos dessa estrutura ressoam nas práticas institucionais e nas dinâmicas culturais, dificultando a plena cidadania feminina.

O Direito, como construção social, historicamente reproduziu essas desigualdades. Até meados do século XX, as legislações de muitos países, inclusive o Brasil, limitavam a participação política da mulher, sua autonomia civil e sua proteção contra a violência doméstica. Como lembra Saffioti (2004), a violência contra a mulher foi muitas vezes legitimada por discursos jurídicos que a tratavam como um problema do âmbito privado. Tal invisibilização colaborou para a perpetuação de situações abusivas e impediu por muito tempo a formulação de políticas públicas específicas.

Entretanto, as últimas décadas foram marcadas por avanços significativos na legislação brasileira. A promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) representou um marco no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Da mesma forma, a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015) tornou mais visível a gravidade das mortes de mulheres motivadas por sua condição de gênero. O fortalecimento das Delegacias da Mulher, dos Centros de Referência de Atendimento à Mulher e da Rede de Atendimento à Mulher Vítima de Violência representa uma evolução importante, embora ainda insuficiente diante da realidade vivida em muitos territórios.

Apesar dessas conquistas, o sistema de justiça ainda apresenta barreiras significativas para as mulheres, especialmente as negras, indígenas, periféricas. Segundo Carneiro (2011), a interseccionalidade é fundamental para compreender como diferentes formas de opressão se somam, criando realidades ainda mais vulneráveis e excluídas do acesso pleno à justiça. Além disso, o racismo institucional e a lgbtfobia, frequentemente naturalizados, dificultam a escuta qualificada e o acolhimento humanizado de vítimas que fogem do padrão hegemônico branco e heteronormativo.

Nesse cenário, os movimentos feministas desempenham papel fundamental na luta por justiça social, questionando o direito positivado e propondo novos paradigmas de justiça baseada em equidade. Essas ações vão além da denúncia, criando redes de apoio, projetos educativos e formas de resistência cotidianas que impactam tanto o campo jurídico quanto o social. O feminismo popular, por exemplo, tem se articulado nas periferias e comunidades, promovendo educação em direitos, autonomia econômica e cuidado coletivo, revelando-se uma ferramenta essencial de transformação social.

A cultura do machismo estrutural, ainda presente em instituições públicas como escolas, mídia e até o próprio sistema judiciário, dificulta a efetivação dos direitos já conquistados. Como destaca Bourdieu (1999), as violências simbólicas operam de forma sutil, porém constante, limitando a transformação efetiva das estruturas sociais. Isso se expressa nos julgamentos que culpabilizam vítimas, nos estereótipos midiáticos que reforçam papéis de gênero retrógrados, e na ausência de representatividade feminina nos espaços de decisão.

Nesse contexto, novas abordagens como a justiça restaurativa têm ganhado espaço, propondo o acolhimento das vítimas e a responsabilização dos agressores por meio do diálogo, sem negligenciar os direitos da mulher. É um caminho possível para reparar danos, restaurar vínculos comunitários e construir uma cultura de paz. Contudo, é necessário cautela para que essa abordagem não substitua o necessário rigor na responsabilização dos agressores, sobretudo em contextos de violência de gênero recorrente.

A transformação social passa necessariamente pela educação. Inserir a temática da igualdade de gênero nos currículos escolares é fundamental para a formação de uma cidadania crítica e comprometida com os direitos humanos. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reforça essa urgência ao destacar a importância de valores como empatia, respeito às diferenças e promoção da equidade. Além disso, projetos pedagógicos que abordem a história das mulheres, o combate à violência de gênero e os direitos sexuais e reprodutivos tornam-se indispensáveis para que novas gerações questionem e superem padrões discriminatórios.

Cabe também destacar o papel das educadoras e dos educadores como agentes transformadores. Ao criarem ambientes seguros, acolhedores e democráticos, são capazes de romper com a lógica autoritária e sexista ainda vigente em muitos contextos escolares. A formação docente continuada, conforme orienta a BNC-Formação, deve incorporar temas como gênero, diversidade e direitos humanos, valorizando a escuta ativa e a abordagem crítica dos conteúdos escolares.

Por fim, é essencial compreender que a efetivação da justiça para as mulheres não se resume à criação de leis, mas à construção de uma cultura democrática que reconheça e combata as desigualdades de gênero. Essa luta é coletiva, contínua e exige o compromisso de todos os setores da sociedade: poder público, instituições de ensino, sistema judiciário, meios de comunicação e, sobretudo, da população civil. Somente por meio da ação conjunta será possível assegurar a equidade de direitos e a dignidade plena de todas as mulheres.


Referências:

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/16/o/BOURDIEU__Pierre._A_domina%C3%A7%C3%A3o_masculina.pdf. Acesso em: 25 maio 2025.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. 2013. Disponível em: https://www.patriciamagno.com.br/wp-content/uploads/2021/04/CARNEIRO-2013-Enegrecer-o-feminismo.pdf. Acesso em: 25 maio 2025.

RIBEIRO, Djamila (Org.). O que é: Lugar de Fala?. São Paulo: Letramento, 2017. Disponível em: https://mulherespaz.org.br/site/wp-content/uploads/2021/04/Djamila-RIbeiro-O-Que-e-Lugar-de-Fala-2017-Letramento.pdfAcesso em: 25 maio 2025.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2015. Disponível em: https://fpabramo.org.br/editora/wp-content/uploads/sites/17/2021/10/genero_web.pdfem: 25 maio 2025.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/viewFile/71721/40667. Acesso em: 25 maio 2025.

BNCC. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: https://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 25 maio 2025.

BRASIL. Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 25 maio 2025.

BRASIL. Lei n.º 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o Código Penal para incluir o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm. Acesso em: 25 maio 2025.

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