Por Zevaldo Sousa (professor licenciado em História e pedagogo)
Introdução
A sociedade brasileira é marcada por uma diversidade cultural e étnica profunda, mas também por desigualdades históricas. Compreender as relações de poder, as formas de organização social de diferentes povos e os desafios da inclusão étnico-racial é fundamental para analisarmos criticamente nosso presente. Neste texto, exploraremos conceitos-chave da sociologia de Max Weber sobre poder e dominação legítima, refletiremos sobre a organização social de povos indígenas e afrodescendentes (como as comunidades quilombolas) na Amazônia contemporânea, discutiremos a relação entre o Estado moderno e a sociedade civil no Brasil – especialmente no tocante a políticas de inclusão ou exclusão étnico-racial –, e, por fim, abordaremos as desigualdades étnico-raciais e o papel transformador da juventude na luta por uma sociedade mais justa. A linguagem aqui é acessível, porém crítica e instigante, convidando você, a pensar sobre como esses temas estão interligados e a refletir sobre seu papel enquanto cidadão na transformação social.
Poder, Política e Dominação Legítima segundo Max Weber
Um bom ponto de partida é entender poder e política do ponto de vista sociológico. Max Weber (1864-1920), um dos fundadores da sociologia, definia poder como a capacidade de impor a própria vontade sobre os outros, mesmo contra resistências. Já a dominação seria uma forma especial de poder: é quando essa obediência dos subordinados é vista como legítima, isto é, considerada válida ou justificável por algum princípio ou crença compartilhada. Weber argumenta que existem três tipos “puros” de dominação legítima – três formas básicas pelas quais os governantes conseguem que os governados os obedeçam acreditando na legitimidade dessa ordem: a dominação legal-racional, a tradicional e a carismática (WEBER, 1999).
- Dominação legal-racional: Baseia-se em regras impessoais e leis. A autoridade é exercida por meio de normas racionalmente estabelecidas, como as leis de um país, valendo para todos. Quem comanda ocupa o cargo por procedimentos formais (eleição, concurso etc.) e tanto governantes quanto cidadãos se submetem a um conjunto de regras predefinidas – por exemplo, a Constituição e as leis. É o tipo de poder típico do Estado moderno burocrático. Exemplo: a autoridade de um presidente, de um juiz ou de um policial em uma democracia se apoia no ordenamento jurídico e nas instituições legais. A obediência dos cidadãos decorre da crença na legalidade dessas normas e na competência técnica/jurídica de quem governa (afinal, até o governante “obedece” à lei).
- Dominação tradicional: Fundamenta-se nos costumes e tradições transmitidos de geração em geração. As pessoas obedecem porque “sempre foi assim” – ou seja, há uma crença na legitimidade de uma autoridade histórica, sagrada ou herdada. Nessa forma, não é necessário que o líder tenha competência formal; o que importa é a antiguidade da ordem social. Exemplos: a autoridade de um rei em uma monarquia absolutista (justificada pelo direito divino ou linhagem sanguínea), ou do patriarca em uma família tradicional, típica do patriarcado rural da época colonial brasileira. No Brasil Colônia, por exemplo, os senhores de engenho eram líderes tradicionais: controlavam a família, os escravizados e agregados em torno da casa-grande, e todos obedeciam ao “senhor” porque essa era a ordem estabelecida desde sempre. A estabilidade desse poder vem justamente da força do hábito e da continuidade histórica, e questioná-lo é difícil porque rompê-lo significaria desafiar toda uma tradição.
- Dominação carismática: Ocorre quando a obediência decorre do carisma pessoal de um líder – suas qualidades extraordinárias que inspiram devoção, lealdade e até veneração. Nesse caso, os seguidores obedecem não a regras impessoais ou à tradição, mas sim acreditam nas características excepcionais (heroicas, santas, revolucionárias etc.) daquele indivíduo. Exemplos: líderes religiosos, profetas, ou grandes líderes políticos e sociais cujo magnetismo pessoal mobiliza as massas. Weber menciona figuras como Jesus, Maomé, Napoleão; podemos pensar também em líderes como Mahatma Gandhi ou Martin Luther King Jr. (positivamente) e, de outro lado, líderes como Adolf Hitler, que exerceram forte dominação carismática na Alemanha nazista. A dominação carismática costuma ser instável – dura enquanto dura o encanto: se os seguidores perdem a fé no líder ou se ele desaparece, o poder se dissolve rapidamente. Por isso, movimentos carismáticos frequentemente precisam se “racionalizar” ou “tradicionalizar” com o tempo para perdurar (por exemplo, instituir regras ou criar tradições a partir das ideias do líder).
Você consegue identificar exemplos atuais de autoridades ou líderes que correspondam a cada um desses três tipos de dominação (legal, tradicional e carismática)? Em qual deles você classificaria o poder político predominante no Brasil hoje, e por quê?
Organização Social de Povos Indígenas e Afrodescendentes na Amazônia
A região amazônica brasileira abriga uma riquíssima tapeçaria de povos e culturas tradicionais. Entre eles destacam-se os povos indígenas, originários do Brasil, e as comunidades afrodescendentes, incluindo os quilombolas (descendentes de africanos escravizados que formaram comunidades autônomas). Cada um desses grupos desenvolveu formas próprias de organização social, e hoje protagonizam importantes iniciativas políticas, sociais e culturais, resistindo à marginalização histórica e afirmando suas identidades.
Na Amazônia, vivem mais de 180 povos indígenas, falando mais de 160 línguas, em centenas de aldeias e terras indígenas espalhadas pelos nove estados da região (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins) e países vizinhos. Essas comunidades se organizam tradicionalmente de maneira coletiva e horizontal, muitas vezes com base em clãs ou famílias extensas, lideranças escolhidas pelo respeito e sabedoria (caciques, pajés, conselhos de anciãos), e forte conexão espiritual com o território. Cada povo tem sua própria cosmovisão, seus rituais, mitos e formas de educação dos jovens. Apesar das diferenças entre etnias, há traços comuns: a terra é geralmente entendida como bem coletivo (e sagrado), as decisões importantes tendem a ser deliberadas em grupo, e a cultura (língua, arte, crenças) é transmitida oralmente de geração em geração.
No contexto contemporâneo, os indígenas na Amazônia têm se organizado politicamente para defender seus direitos e culturas. Um exemplo notável é a criação da COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, fundada em 1989, que hoje reúne 75 organizações de base indígena nos nove estados da Amazônia. A COIAB representa cerca de 860 mil indígenas de 180 povos diferentes e luta por direitos básicos à terra, saúde, educação e respeito à diversidade cultural. Essa e outras organizações fortalecem o protagonismo indígena frente ao Estado e a sociedade, atuando em rede (regional, nacional e até internacionalmente) para pressionar por políticas públicas adequadas. Graças a essa mobilização, conquistaram avanços importantes, como a demarcação de terras indígenas (prevista na Constituição de 1988) e a criação, em 2023, de um Ministério dos Povos Indígenas no governo federal – cuja primeira titular foi a líder indígena Sônia Guajajara, ela própria uma mulher indígena amazônida ocupando um alto posto político. Do ponto de vista sociocultural, o protagonismo indígena se expressa também na valorização de suas línguas (muitas comunidades mantêm escolas bilíngues interculturais), na difusão de suas artes e conhecimentos tradicionais (como a medicina das plantas, o artesanato, a música), e em movimentos juvenis indígenas que articulam tradição e modernidade (por exemplo, jovens indígenas usando as redes sociais para divulgar sua cultura e denunciar problemas como o desmatamento e o garimpo ilegal em terras indígenas).
Assista ao vídeo abaixo para saber mais sobre "A questão indígena"
Já as comunidades afrodescendentes da Amazônia incluem populações negras urbanas e rurais, mas um grupo de destaque são os quilombolas. Quilombos, historicamente, foram redutos formados por escravizados africanos fugidos, muitas vezes em áreas de difícil acesso (florestas, margens de rios, quilombos em ilhas etc.). Na Amazônia, especialmente nos estados do Maranhão, Pará, Amapá, Amazonas, Tocantins e Rondônia, existem hoje centenas de comunidades remanescentes de quilombos, reconhecidas oficialmente como quilombolas. Segundo mapeamentos da Nova Cartografia Social Brasileira, há mais de 1.000 comunidades quilombolas na Amazônia Legal – cerca de 750 no Maranhão, mais de 400 no Pará, quase 100 no Tocantins, e dezenas nos outros estados (ISPN, site). O Censo do IBGE de 2022 identificou aproximadamente 426 mil pessoas quilombolas residindo na Amazônia Legal, o que corresponde a quase um terço de toda a população quilombola do país (Agência IBGE, 2023). Esses números revelam que a presença afro-amazônida é significativa e diversa.
As comunidades quilombolas atuais possuem uma organização social baseada na solidariedade comunitária, na agricultura familiar, no extrativismo e em laços de parentesco e vizinhança. Costumam estar localizadas em territórios herdados de seus antepassados, muitas vezes em zonas rurais ou ribeirinhas, onde praticam modos de vida tradicionais em harmonia com a natureza. Culturalmente, preservam danças, celebrações religiosas sincréticas (misturando elementos africanos e católicos, por exemplo), culinária típica e outros traços da herança africana adaptados ao contexto amazônico. Um aspecto importante do protagonismo quilombola é a luta pela titulação de seus territórios – garantir a propriedade coletiva da terra onde vivem, direito assegurado pela Constituição de 1988 e regulamentado pelo Decreto 4.887/2003. Na Amazônia, assim como em outras regiões, comunidades quilombolas organizadas têm pressionado órgãos governamentais para a demarcação e registro de suas terras, protegendo-as contra invasões e contra o avanço do desmatamento e do agronegócio predatório. Também criaram associações comunitárias e cooperativas para melhorar suas condições de vida, buscando acesso a educação, saúde, infraestrutura e mercados para seus produtos.
No campo político e social, afrodescendentes amazônicos têm conquistado espaços de protagonismo: seja em movimentos negros urbanos das capitais (que denunciam o racismo e promovem a cultura negra), seja na representação institucional – por exemplo, hoje existem vereadores, prefeitos e parlamentares negros e quilombolas em estados amazônicos, algo impensável há algumas décadas. Culturalmente, eventos como quilombos turísticos, festas afro-religiosas abertas ao público e grupos de jovens quilombolas usando música (rap, reggae), poesia e outras expressões artísticas para afirmar seu orgulho identitário mostram a vitalidade dessas comunidades. Como afirmam Ribeiro e Lima (2024), “pensar a História do Brasil em dimensões afro-indígenas é recobrar diferentes sentidos sobre a nossa história”, reconhecendo que povos negros e indígenas teceram múltiplas estratégias para enfrentar o racismo e as violências do colonialismo, garantindo seus modos de vida plurais ao longo do tempo, aspectos que “reverberam no tempo presente” e ajudam a moldar perspectivas de futuro. Em outras palavras, indígenas e afrodescendentes não são apenas vítimas passivas da história, mas atores fundamentais na construção da nossa sociedade – e continuam a sê-lo na atualidade, ao reivindicarem direitos, preservarem conhecimentos ancestrais e inovarem em formas de organização social sustentáveis.
Quais semelhanças e diferenças você nota entre a organização social de um povo indígena e a de uma comunidade quilombola? Que exemplos de protagonismo (político, social ou cultural) dessas comunidades na Amazônia você conhece – ou consegue imaginar – nos dias de hoje?
Estado Moderno e Sociedade Civil: Inclusão e Exclusão Étnico-Racial no Brasil
No Brasil, a relação entre o Estado moderno e a sociedade civil sempre foi permeada por tensões em torno da questão étnico-racial. O Estado brasileiro, seguindo o modelo do Estado moderno ocidental, é fundado na ideia de cidadania universal – em tese, todos são iguais perante a lei desde a Constituição de 1988, independentemente de cor, etnia ou origem. O Estado detém, como definiu Weber, o “monopólio da violência legítima”, isto é, o poder de coerção (polícias, Forças Armadas) e de criar leis para garantir a ordem e proteger os direitos de todos. Por outro lado, sabemos que, na prática, grupos distintos da sociedade civil vivenciam de formas diferentes a ação do Estado, e muitas vezes tiveram de se mobilizar coletivamente para que seus direitos fossem reconhecidos. Quando falamos em inclusão ou exclusão étnico-racial, falamos justamente de políticas e práticas do Estado (ou de sua ausência) que podem reduzir desigualdades – ou perpetuá-las – e do papel da sociedade civil em influenciar essas políticas.
Historicamente, a população negra e os povos indígenas foram excluídos da plena cidadania no Brasil. Após a Abolição da escravatura (1888), não houve por parte do Estado um plano robusto de integração dos ex-escravizados na sociedade: ao contrário, prevaleceu a ideologia do branqueamento e do mito da democracia racial, que negava o racismo enquanto, na realidade, negros e mulatos seguiam relegados às posições sociais mais desfavoráveis. Os indígenas, por sua vez, foram tutelados pelo Estado (via SPI, depois FUNAI) e sofreram políticas assimilacionistas que visavam integrá-los pela perda de sua cultura, ou foram simplesmente expulsos de suas terras por projetos desenvolvimentistas. Foi somente a partir dos movimentos sociais do século XX – o movimento negro, o indigenista, organizações de direitos humanos – que o Estado brasileiro começou a adotar políticas de inclusão étnico-racial. Exemplos importantes incluem: a criminalização do racismo (Lei n.º 7.716/1989, que regulamenta o artigo constitucional que torna o racismo crime inafiançável), a criação de órgãos como a Fundação Palmares (1988) para promoção da cultura afro-brasileira, a demarcação de Terras Indígenas e Quilombolas garantida na Constituição de 1988, as cotas raciais em universidades e concursos públicos (a partir de 2003 nas estaduais e ampliadas por lei federal em 2012), e o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n.º 12.288/2010), que estabelece diretrizes para garantir direitos da população negra em diversas áreas. Essas medidas representam esforços do Estado para incluir grupos antes marginalizados, reconhecendo desigualdades estruturais e buscando corrigi-las.
No entanto, desafios persistem. Muitos estudiosos apontam que o Brasil ainda vive sob um racismo estrutural, isto é, um racismo que não se resume a atitudes individuais de preconceito, mas se manifesta nas estruturas sociais, econômicas e políticas de forma abrangente (ALMEIDA, 2018). Esse racismo estrutural faz com que, mesmo sem leis discriminatórias explícitas, certos grupos continuem em desvantagem no acesso a direitos e oportunidades. Dados oficiais confirmam essa realidade: segundo pesquisa do IBGE, a população negra no Brasil é a mais afetada pelo desemprego, pela pobreza e também pela violência – por exemplo, jovens negros morrem em números desproporcionais vítimas de homicídios e da violência policial (SOUSA, 2025). Do mesmo modo, comunidades tradicionais indígenas e quilombolas enfrentam maiores dificuldades de acesso a serviços essenciais (educação de qualidade, saúde, saneamento) e sofrem ameaças constantes em relação aos seus territórios. Nos últimos anos, conflitos fundiários e ambientais em regiões amazônicas têm resultado em violência contra indígenas e quilombolas, expondo uma exclusão persistente: esses cidadãos muitas vezes não veem seus direitos plenamente protegidos pelo Estado. Em resumo, legalmente todos são cidadãos com direitos iguais, mas socialmente as heranças do passado escravista-colonial ainda produzem desigualdades étnico-raciais de longa duração.
Saiba mais sobre o Racismo no Brasil assistindo o vídeo: "Desigualdade racial no Brasil", da Revista SuperInteressante.
Diante disso, o papel da sociedade civil organizada tem sido crucial para pressionar o Estado e propor caminhos de inclusão. Movimentos sociais, ONGs, associações comunitárias e lideranças de grupos étnicos atuam como voz ativa, denunciando exclusões e formulando demandas. Foi a mobilização da sociedade civil que levou, por exemplo, à implementação das políticas de cotas (resultado de décadas de reivindicação do movimento negro) e à própria constitucionalização de direitos dos indígenas e quilombolas em 1988 (fruto de intensos debates na Assembleia Constituinte influenciados por indigenistas, missionários e ativistas). Hoje, conselhos participativos e fóruns (como o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, ou conferências nacionais de políticas para povos indígenas) permitem que representantes da sociedade civil dialoguem diretamente com o Estado na formulação de políticas. Apesar de nem sempre suas vozes serem ouvidas como deveriam, esses mecanismos ampliam a participação democrática e a fiscalização das ações estatais.
Um conceito útil aqui é o de cidadania ativa. Não basta que o Estado “dê” direitos; é preciso que os cidadãos conheçam e reivindiquem esses direitos. A filósofa política Hannah Arendt dizia que a cidadania é o direito a ter direitos – e no contexto étnico-racial brasileiro, conquistar esse direito pleno muitas vezes exigiu (e exige) luta coletiva. Como bem coloca a socióloga Miriam Abramovay, “não há transformação social sem a ação coletiva e consciente dos indivíduos” (ABRAMOVAY, 2002). Em outras palavras, a sociedade civil (inclusive nós, jovens, estudantes, trabalhadores, comunidades) precisa se organizar – seja por meio de protestos, de movimentos culturais, de projetos comunitários ou de diálogo institucional – para garantir que o Estado cumpra seu papel de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça ou cor, conforme manda nossa Constituição.
Por fim, vale destacar que inclusão não significa apagar diferenças, e sim valorizar a diversidade dentro da sociedade. Quando o Estado inclui a história afro-brasileira e indígena nos currículos escolares (como determina a Lei 11.645/2008), ou apoia iniciativas culturais dessas comunidades, está não só compensando séculos de exclusão, mas enriquecendo a própria identidade nacional com múltiplas perspectivas. Estado e sociedade civil devem atuar em parceria para construir políticas públicas que promovam a equidade, enfrentem o racismo e celebrem a pluralidade. Essa é uma tarefa ética e política de longo prazo: requer vontade política, recursos e, sobretudo, engajamento cidadão contínuo.
Na sua avaliação, o Estado brasileiro tem sido eficaz em implementar políticas de inclusão étnico-racial? Que políticas ou ações governamentais você considera mais importantes para reduzir as desigualdades entre brancos, negros e indígenas no Brasil? E de que forma você acha que a sociedade (movimentos, escolas, empresas, cidadãos) pode agir quando essas políticas falham ou não existem?
Desigualdades Étnico-Raciais e o Protagonismo da Juventude na Transformação Social
As desigualdades étnico-raciais que discutimos não são injustiças abstratas – elas se manifestam no dia a dia, nas oportunidades de estudo e trabalho, na forma como diferentes grupos são tratados, na representatividade nos espaços de poder. Enxergar e enfrentar essas desigualdades é um passo essencial para construir uma sociedade ética e democrática. E nessa missão, a juventude tem um papel especialmente dinâmico e promissor. Os jovens, muitas vezes, estão na linha de frente das mudanças sociais, trazendo novas ideias, questionando velhos preconceitos e usando ferramentas inovadoras (tecnológicas, culturais) para promover justiça e inclusão.
Primeiramente, é importante compreender o que está na base das desigualdades étnico-raciais atuais. Retomando o conceito de racismo estrutural: o jurista e filósofo Silvio Almeida explica que o racismo, no Brasil, não é apenas um preconceito individual, mas um sistema histórico que permeia as instituições e relações sociais, favorecendo sistematicamente uns (brancos) e desfavorecendo outros (negros, indígenas) mesmo sem intenção declarada (Veja mais neste texto do Blog). Ele se manifesta, por exemplo, quando a maioria dos pobres e moradores de áreas sem saneamento básico é negra; quando indígenas têm dificuldade de acesso a escolas ou hospitais de qualidade; ou quando quase não vemos pessoas negras e indígenas em altos cargos de empresas, universidades ou governo. Esses fenômenos não são “naturais”, mas resultantes de séculos de exclusão. Além disso, há o fator da interseccionalidade: uma jovem que seja negra, mulher e moradora de periferia, por exemplo, enfrenta camadas múltiplas de barreiras – de gênero, raça e classe – em comparação a um jovem branco, homem e de classe média (Crenshaw, 2002). Reconhecer essas sobreposições é importante para pensar soluções que alcancem quem mais precisa.
Diante de problemas tão enraizados, pode parecer difícil vislumbrar transformações. Mas é justamente aí que entra a força das novas gerações. Nas últimas décadas, temos assistido a uma verdadeira reinvenção das formas de ativismo e participação social, muito impulsionada por jovens ao redor do mundo. Movimentos contemporâneos mostram a energia da juventude ao questionar desigualdades: por exemplo, o movimento #BlackLivesMatter (Vidas Negras Importam), iniciado por jovens ativistas nos EUA e que ganhou apoio internacional, expôs a violência policial contra negros e pressionou por mudanças; no Brasil, campanhas como #VidasNegras e protestos após casos de racismo tiveram ampla adesão de jovens. Outro caso foi o movimento #EleNão, engajando principalmente jovens e mulheres nas redes sociais contra a eleição de Bolsonaro e nas ruas contra discursos considerados racistas, misóginos ou autoritários. Também vemos jovens indígenas levantando sua voz – como nas edições do Acampamento Terra Livre, em que lideranças indígenas, muitas delas bem jovens, se reúnem em Brasília para exigir seus direitos. Há ainda as marchas pelo clima, com adolescentes como Greta Thunberg inspirando milhões no mundo todo a protestar por justiça climática (um tema que afeta especialmente povos tradicionais, inclusive na Amazônia). Essas mobilizações ilustram como, no século XXI, um post com uma hashtag pode mobilizar milhares de pessoas em torno de uma causa, numa velocidade antes impensável. A tecnologia digital redesenhou as práticas de contestação: campanhas online se traduzem em atos de rua, e vice-versa, num ciclo virtuoso de conscientização. Como analisa o sociólogo Manuel Castells, vivemos na era da “autocomunicação de massas”, em que cada indivíduo com um smartphone pode gerar impacto político e cultural globalmente (CASTELLS, 2013) - (Leia mais aqui no Blog).
A juventude brasileira tem sido protagonista nessa transformação social de várias maneiras. Uma delas é trazendo novas pautas e visibilidade para temas antes ignorados. Hoje se fala abertamente em racismo estrutural, genocídio da população negra, violência contra indígenas, representatividade, lugar de fala – termos e ideias que ganharam força muito pelo engajamento de jovens nas universidades, nas artes e nas redes sociais. Essas lutas se conectam também com outras agendas de direitos humanos que os jovens abraçam, como a questão de gênero (feminismo, movimento LGBTQIAPN+), a questão ambiental e a desigualdade econômica. Ou seja, as novas gerações entendem de forma mais intuitiva que as opressões se interligam. Não por acaso, vemos surgir coletivos interseccionais formados por jovens periféricos, negros, indígenas, mulheres, pessoas LGBTQ+, unidos para se apoiar e reivindicar mudanças. Eles estão ocupando espaços – seja produzindo conteúdo na internet, seja criando start-ups sociais, ocupando grêmios estudantis e centros acadêmicos, ou mesmo entrando na política formal. Uma conquista simbólica, por exemplo, foi a eleição de jovens mulheres negras e indígenas para vereanças e assembleias legislativas em 2020 e 2022, algumas vindas diretamente do ativismo de base. Tais resultados indicam que, aos poucos, outras vozes estão ecoando nas esferas de poder.
Outra frente de protagonismo juvenil é a cultura. A cena cultural periférica e negra do Brasil – nos slams de poesia, nas batalhas de rap, no funk consciente, no teatro de periferia – é majoritariamente movida por jovens. Nessas manifestações, denunciam-se o racismo, a violência policial, as desigualdades, ao mesmo tempo em que se afirma a identidade e o orgulho de ser quem se é. A arte, assim, vira também arma política e educativa. Na Amazônia, por exemplo, jovens quilombolas têm usado a música (como o marabaixo no Amapá, o carimbó no Pará reinventado pela juventude) para reforçar suas raízes africanas e denunciar problemas locais. Jovens indígenas têm produzido curtas-metragens, grafites e livros que contam suas versões da história e do presente, rompendo estereótipos. Esse ativismo cultural atinge o público de forma muito eficaz, gerando empatia e reflexão às vezes mais do que discursos formais.
Não podemos esquecer do papel da educação na capacitação ética e crítica da juventude. A escola e os professores têm o desafio de canalizar essa energia transformadora dos jovens e também orientá-la. Hoje, com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reforçando temas como diversidade e cidadania, espera-se que as questões étnico-raciais sejam discutidas em sala de aula desde cedo. Por exemplo, aprender sobre a história e cultura africana e indígena não é só cumprir a lei 11.645, mas formar mentes mais abertas e combater preconceitos na raiz. Além disso, metodologias ativas e projetos podem estimular o protagonismo juvenil: grêmios estudantis debatendo inclusão, feiras culturais sobre consciência negra, oficinas com líderes comunitários, etc. Como apontou Paulo Freire, a educação deve ser uma prática da liberdade, “formando sujeitos éticos, críticos e transformadores” (FREIRE, 1987). Muitos educadores já têm inserido essa perspectiva, usando, por exemplo, as próprias redes sociais e casos atuais como material didático para discussão. Afinal, os jovens já estão nas ruas e nas redes lutando por suas causas; a escola pode ser parceira e catalisadora desse processo, ajudando-os a ler o mundo criticamente e agir sobre ele de forma consciente.
Em síntese, apesar das desigualdades e do racismo ainda serem realidades duras, há motivos para ter esperança. A geração atual demonstra uma vontade enorme de mudar as coisas: questiona injustiças, inova em formas de mobilização e cobra coerência ética da sociedade. O envolvimento dos jovens na transformação social é não apenas desejável, mas necessário – afinal, são eles os futuros (e já presentes) líderes, eleitores, formadores de opinião e profissionais que darão continuidade (ou não) aos avanços conquistados. Empoderar a juventude – com educação de qualidade, acesso à cultura, espaços de participação – é sem dúvida uma das estratégias mais eficazes para combater as desigualdades étnico-raciais e construir um Brasil mais justo e plural.
De que formas você, como jovem, pode contribuir ativamente para reduzir o racismo e a desigualdade em sua comunidade e na escola? Você participa de alguma iniciativa (seja um projeto, um grêmio, um coletivo online) em que os jovens buscam mudanças sociais? Como as redes sociais e a internet podem ser usadas de maneira positiva pelos jovens para combater preconceitos e promover a diversidade?
Conclusão
Percorremos, ao longo deste texto, temas centrais sobre sociedade, política e ética relacionados à diversidade étnico-racial brasileira. Vimos, com Max Weber, que o poder pode se legitimizar de diferentes formas – pela razão legal, pela tradição ou pelo carisma – e que entender essas bases da autoridade nos ajuda a analisar criticamente as relações de poder ao nosso redor. Exploramos também como povos historicamente marginalizados – indígenas e afrodescendentes – organizam-se e resistem na Amazônia, assumindo protagonismo em lutas por direitos, na valorização de suas culturas e na contribuição para novas formas de viver em comunidade. Refletimos sobre o papel do Estado em incluir (ou excluir) esses grupos, percebendo que a mera igualdade formal não basta: é preciso atuar ativamente contra o racismo estrutural e as desigualdades persistentes, algo que só se alcança com políticas públicas sérias e com a vigilância e participação constante da sociedade civil. Por fim, destacamos o imenso potencial da juventude na transformação social – com sua energia, criatividade e senso de justiça, os jovens estão reinventando a cidadania e mostrando que um futuro diferente é possível, mais plural e menos excludente.
Fica claro que sociedade, política e ética se entrelaçam quando falamos em relações étnico-raciais: construir uma sociedade ética implica reconhecer a dignidade de todos os seus membros (independentemente de cor ou cultura), o que é por si só um ato político; demanda também repensar as estruturas de poder para torná-las mais inclusivas, equitativas e justas. Esperamos que as discussões apresentadas aqui tenham instigado a sua reflexão crítica. As perguntas ao final de cada seção servem como convite para você não apenas absorver informações, mas posicionar-se, debater com colegas e professores, e relacionar os temas com sua vivência. Afinal, a educação só cumpre seu propósito quando nos leva a pensar sobre o mundo e sobre como podemos transformá-lo para melhor.
Você, como jovem do Ensino Médio, faz parte de uma geração que tem em mãos as ferramentas e a sensibilidade para promover grandes mudanças. O estudo da sociologia, da história e da filosofia oferece bases para entender os desafios, mas é na prática cotidiana, nas pequenas e grandes ações, que construímos a ética da convivência e da igualdade. Que você possa se reconhecer como sujeito de direitos e deveres, apreciar a diversidade que forma o Brasil e, sobretudo, sentir-se capaz de contribuir para uma sociedade mais democrática, equitativa e humana. Como nos lembra o pensador Boaventura de Sousa Santos, “temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza, e o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. Encontrar esse equilíbrio é a tarefa de uma sociedade eticamente orientada – uma tarefa nossa, minha, sua, de todos nós.
Referências
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ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2018.
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CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
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RIBEIRO, Benedito E.; LIMA, Maria R. Histórias do Brasil e(m) dimensões afro-indígenas. Aedos (UFRGS), Porto Alegre, v. 16, n. 35, p.5–16, dez. 2023 – mar. 2024.
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SOUSA, Zevaldo. Das ruas às redes: os novos movimentos sociais e a reinvenção da cidadania. Blog Lab de Educador, 22 maio 2025. Disponível em: blog.labdeeducador.com.br. Acesso em: 20 jul. 2025.
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WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora UnB, 1999 (obra original de 1922).