Este artigo apresenta uma análise sistemática das principais concepções de história, abordando suas dimensões epistemológicas, pedagógicas e sua aplicação no contexto educacional brasileiro. Partindo de uma revisão crítica de concepções tradicionais e contemporâneas, o texto discute a história como ciência, como conhecimento prático e como instrumento de formação de consciência histórica. Destaca a importância da aprendizagem histórica na formação de competências e habilidades essenciais para o século XXI, alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e às diretrizes da Base Nacional Comum Curricular. Incorpora debates contemporâneos sobre história pública, perspectiva decolonial, negacionismo historiográfico e interseccionalidade.
Palavras-chave: História; Concepções historiográficas; Ensino de História; Consciência histórica; Educação.
Texto e Contexto
Por Zevaldo Sousa
1. Introdução
A história, enquanto campo de conhecimento e prática educativa, não constitui um saber neutro ou acabado. Ao contrário, ela se constitui através de diferentes concepções que refletem visões de mundo, abordagens metodológicas e propósitos educacionais específicos. Compreender essas concepções é fundamental para educadores, pesquisadores e profissionais da educação que buscam refletir criticamente sobre o ensino e a aprendizagem histórica (CERRI, 2011).
A palavra "história" designa simultaneamente um conjunto de eventos do passado, a disciplina acadêmica que os estuda, e a narrativa por meio da qual compreendemos esses eventos. Essa multiplicidade de significados revela a complexidade intrínseca da história como campo de saber. Não se trata simplesmente de "o que aconteceu", mas de como compreendemos, interpretamos e damos sentido àquilo que passou, para orientar nossas ações no presente e construir expectativas para o futuro (BLOCH, 2001).
A importância de discutir as concepções da história se evidencia ainda mais quando consideramos o contexto educacional contemporâneo. Professores de história enfrentam desafios complexos ao tentar não apenas transmitir conteúdos, mas formar nos alunos uma consciência histórica capaz de capacitá-los para compreender o mundo, orientar-se nas mudanças temporais e participar criticamente da vida coletiva (SCHMIDT, 2009). Simultaneamente, a proliferação de narrativas a-históricas, negacionismos historiográficos e a disseminação de desinformação em plataformas digitais exigem pensamento histórico rigoroso, metodologicamente fundamentado e eticamente comprometido (OLIVEIRA, 2023).
2. História como Ciência e Conhecimento Prático
2.1 Definições e Dimensões Preliminares
A história pode ser concebida em pelo menos três dimensões fundamentais: como ciência, como conhecimento prático e como meio de formação de identidades (CARDOSO; VAINFAS, 1997):
- Enquanto ciência, a história é uma disciplina acadêmica que utiliza narrativas para descrever, examinar e analisar eventos passados, buscando compreender padrões de causa e efeito através da análise crítica de fontes e evidências.
- Como conhecimento prático, a história constitui uma construção de sentido sobre a experiência do tempo, funcionando como instrumento de orientação para a vida prática das sociedades e indivíduos (RÜSEN, 2001).
- A história também desempenha um papel crucial na formação de identidades, tanto pessoais quanto coletivas. Ela permite que os indivíduos e grupos entendam suas origens, suas transformações e suas perspectivas futuras. Esse processo de construção identitária é sempre mediado pela interpretação e pela narrativa, revelando que a história nunca é um simples espelho do passado, mas uma construção reflexiva que envolve escolhas interpretativas (ALVES, 2011).
2.2 A questão epistemológica fundamental: Verdade histórica e intersubjetividade
Uma das questões epistemológicas mais fundamentais da história diz respeito à possibilidade e à natureza da verdade histórica. Existe acesso objetivo à realidade do passado ou há um corte epistemológico entre o sujeito cognoscente e a realidade investigada? A resposta a essa pergunta tem implicações profundas para como compreendemos e ensinamos história.
Diferentes perspectivas têm oferecido respostas distintas a essa questão.
- O realismo crítico propõe que é possível alcançar conhecimento objetivo mediado por critérios racionais de validação.
- O perspectivismo reconhece múltiplas interpretações válidas de um mesmo evento histórico, sem que todas sejam igualmente fundamentadas.
- O relativismo, mais radicalmente, nega a possibilidade de estabelecer verdades objetivas.
- O dialogismo entende que a verdade é construída no diálogo entre diferentes perspectivas, mantendo critérios de validação que impedem o colapso em relativismo absoluto.
A questão da intersubjetividade na produção histórica coloca em relevo o papel fundamental da interpretação e da narrativa na constituição do conhecimento histórico. Isso não significa que tudo seja relativo ou que não haja critérios para validar conhecimentos históricos. Significa, sim, que o conhecimento histórico é sempre produzido por sujeitos situados em contextos específicos, com valores, interesses e perspectivas particulares. A capacidade de reconhecer múltiplas perspectivas sem abandonar rigor metodológico é essencial para historiografia sofisticada (SCHMIDT, 2009).
3. Concepções Tradicionais de História: diversidade e limites
3.1 Características Principais
Embora frequentemente tratada como bloco monolítico, a chamada "história tradicional" engloba diversas correntes historiográficas, da historiografia positivista do século XIX até práticas escolares atuais dos séculos XX e XXI, pois até hoje temos professores, comunicadores, pensadores e historiadores que defendem e escrevem a História em uma perspectiva tradicional. Não é categoria homogênea, mas conjunto de práticas caracterizadas por traços recorrentes:
- busca de uma verdade absoluta cristalizada na fórmula "o que realmente aconteceu";
- visão linear do tempo (passado → presente → futuro);
- causalidade direta presumida entre fenômenos históricos;
- foco em "grandes acontecimentos" e personagens destacadas (SCHMIDT, 2009).
Portanto, a história tradicional privilegia narrativas políticas, militares e de figuras de poder. Seu foco recai sobre reis, generais, estadistas e grandes eventos que marcaram períodos históricos. Os métodos predominantes enfatizam a ordem cronológica dos conteúdos, frequentemente através de memorização de datas, fatos e personagens. Essa abordagem é fortemente marcada por uma perspectiva eurocêntrica, que toma a experiência europeia como o modelo universal de desenvolvimento histórico (VAINFAS, 1997). Particularmente na educação escolar, reproduz-se visão onde "fatos" são apresentados como dados inquestionáveis, enquanto se oculta o caráter interpretativo e construído do conhecimento histórico (ALMEIDA, 2020).
3.2 Métodos e Limitações
Os métodos tradicionais de ensino de história repousam em uma relação passiva do aprendiz com o conhecimento. O conhecimento histórico é apresentado como "fatos como eles são", enquanto se minimiza ou mesmo se oculta os processos de construção desses conhecimentos. As atividades didáticas centram-se frequentemente em reprodução de informações, cronologia e memorização (SCHMIDT, 2009).
As limitações dessa concepção são amplamente reconhecidas na historiografia contemporânea (CARDOSO; VAINFAS, 1997). A história tradicional reduz a história aos feitos das elites, marginalizando ou excluindo sujeitos históricos diversos: mulheres, povos colonizados, trabalhadores, minorias étnicas e religiosas. Ela dificilmente consegue explicar mudanças sociais mais amplas e estruturais, focando-se em eventos políticos pontuais. Além disso, ela obscurece os processos através dos quais o conhecimento histórico é construído, apresentando interpretações como fatos estabelecidos. A consequência é formação de sujeitos incapazes de pensar criticamente sobre o passado, vulneráveis a manipulação historiográfica e negacionismo (OLIVEIRA, 2023).
4. A transição para perspectivas críticas: novas abordagens historiográficas
4.1 Escolas dos Annales: Uma escola plural e geracional
A chamada "Escola dos Annales" não constitui bloco homogêneo, mas série de gerações sucessivas com abordagens significativamente distintas. A primeira geração, representada por Marc Bloch e Lucien Febvre, propôs na década de 1920 uma "história-problema", orientada por questões do presente e aberta a diálogo com outras disciplinas (BLOCH, 2001). Sua inovação foi epistemológica: rejeitava o positivismo que pretendia deixar "fatos falarem por si" e afirmava que história é sempre construção em função de problemática específica.
A segunda geração, sob liderança de Fernand Braudel, desenvolveu conceitos fundamentais como a distinção entre diferentes ritmos temporais (longa duração, média duração, curta duração). Braudel argumentou que compreensão adequada do passado exige atenção a estruturas que mudam lentamente, não apenas a eventos e narrativas políticas. A terceira geração, a partir dos anos 1960, voltou-se para história das mentalidades e das representações, incorporando perspectivas antropológicas e psicológicas. Cada geração mantinha diálogo com presente histórico, incorporando problemáticas contemporâneas (CARDOSO; VAINFAS, 1997).
4.2 Influências teóricas: Marxismo, Historiografia Marxista Britânica e História Vista de Baixo
O marxismo ofereceu ferramentas analíticas para compreensão de estruturas sociais, relações de poder e análise de classes. Historiadores marxistas enfatizaram que história não é simples sucessão de eventos, mas resultado de contradições estruturais e lutas sociais. Contudo, importante distinguir entre marxismo como filosofia e historiografia marxista como prática historiográfica específica (CARDOSO; VAINFAS, 1997).
A historiografia marxista britânica, particularmente do pós-guerra, realizou contribuição singular. Historiadores como Eric Hobsbawm, Christopher Hill e Edward Palmer Thompson desenvolveram trabalhos de grande rigor que combinavam análise estrutural com sensibilidade para agência de atores históricos subalternos. Thompson é o historiador mais especificamente associado ao conceito de "history from below" (história vista de baixo). Seu trabalho seminal The Making of the English Working Class (1963) demonstrou como classe trabalhadora não era simples receptor de história determinada por estruturas econômicas, mas sujeito ativo na construção de sua própria história, através de cultura, resistência e organização política. A história vista de baixo não significa simplesmente contar "histórias de pessoas comuns", mas reconhecer que compreensão adequada de qualquer sociedade exige dar voz a atores historicamente silenciados, compreender suas perspectivas, suas lutas, suas agendas.
5. Concepções epistemológicas contemporâneas
5.1 História como conhecimento situado
As concepções epistemológicas contemporâneas reconhecem que a história não é acesso transparente ao passado. O conhecimento histórico é sempre mediado por perspectivas, contextos históricos específicos e interesses do presente. Não se trata de mero relativismo, mas de reconhecer que a objetividade do conhecimento histórico é alcançada através de critérios racionais rigorosos aplicados no interior de marcos interpretativos necessariamente situados.
Como exemplo, temos a "teoria modificada do reflexo" de Adam Schaff (1974), desenvolvida a partir de diálogo crítico com marxismo, oferece perspectiva sofisticada: entre o sujeito que conhece e aquilo que é conhecido há a mediação da prática. O conhecimento histórico não é cópia passiva da realidade, nem é pura construção subjetiva. Ele é conhecimento, através da prática histórica no presente, de algo que existe objetivamente independentemente do sujeito cognoscente.
5.2 Competência narrativa e tipologias de Consciência Histórica em Jörn Rüsen
A teoria do historiador e educador alemão Jörn Rüsen oferece sofisticado entendimento da aprendizagem histórica (RÜSEN, 2001). Rüsen define "competência narrativa" como a capacidade de formar sentido sobre a experiência temporal. Essa competência não é simples acúmulo de informações históricas, mas desenvolvimento de capacidade de mobilizar a experiência do tempo para orientação na vida prática (RÜSEN, 2007).
Fundamentalmente, Rüsen sistematizou uma tipologia de consciência histórica que descreve diferentes formas através das quais os sujeitos interpretam sua experiência temporal e se orientam na vida prática. Existem quatro tipos principais:
- Consciência Tradicional: O indivíduo traz o passado ao presente sem problematizá-lo. Valores e narrativas tradicionais são reproduzidos como dados inquestionáveis. Oferece segurança existencial mas pouca capacidade crítica.
- Consciência Exemplar: O passado fornece exemplos e modelos para interpretar e agir no presente. Lições do passado aplicam-se mecanicamente a situações presentes. Oferece orientação prática mas não reconhece especificidade histórica.
- Consciência Crítica: O indivíduo nega alguns valores ratificados pela sociedade ao perceber-se inserido em presente conectado ao passado mas que poderia ser diferente. Há reconhecimento de contingência histórica e possibilidade de transformação.
- Consciência Genética: O indivíduo compreende seu presente como reflexo parcial do passado, reconhecendo que o que passou não voltará mas que continuidades permanecem. Há abertura para futuros alternativos enquanto se reconhecem determinações históricas. Essa é forma mais sofisticada de consciência histórica, integrando compreensão de mudança e permanência.
Cada tipo de consciência produz diferentes orientações para ação. A educação histórica adequada busca desenvolvimento progressivo, particularmente em direção à consciência genética, capaz de ação transformadora fundamentada em compreensão histórica profunda.
5.3 Consciência histórica como formação
A consciência histórica é a capacidade estruturante de compreender a vida humana como constituída historicamente. Ela permite entender que aquilo que parece natural ou inevitável é na verdade resultado de processos históricos específicos, passíveis de transformação. A consciência histórica envolve a formação de identidades pessoais e coletivas baseadas em compreensão temporal integrada do passado, presente e futuro.
Portanto, a consciência histórica não é simplesmente um conhecimento sobre a história. É uma atitude, uma capacidade de pensar historicamente, de reconhecer que o presente é sempre aberto a possibilidades futuras diferentes. Ela capacita os sujeitos a transcender perspectivas imobilistas ou fatalistas, oferecendo bases para ação transformadora. Simultaneamente, oferece segurança existencial ao permitir compreensão de si mesmo como parte de processo histórico contínuo.
5.4 Educação Histórica: pluralidade de perspectivas
Importante ressaltar que, além de Rüsen, outras tradições de pesquisa em educação histórica desenvolveram-se em diálogo com a teoria de consciência histórica mas com ênfases próprias. Isabel Barca (2013), pesquisadora portuguesa, desenvolveu linha influente de pesquisa em "educação histórica" que privilegia investigação sobre cognição histórica - como os estudantes realmente constroem compreensão histórica - e sobre as "ideias históricas" de professores e alunos. Seu trabalho enfatiza a necessidade de compreender como sujeitos pensam sobre história, não apenas o que sabem.
No Brasil, Maria Auxiliadora Schmidt (2009) tem desenvolvido pesquisa ampla sobre concepções de aprendizagem histórica presentes em propostas curriculares. Seu trabalho problematiza a tensão entre educação para desenvolvimento de "competências" (como proposto pela BNCC e reformas contemporâneas) versus educação para formação de consciência histórica. Para Schmidt (2016), o risco é que "pedagogia de competências" instrumentalize história, reduzindo-a a conjunto de habilidades transferíveis, sem desenvolver capacidade de sujeitos orientarem-se historicamente na vida prática.
Assim, enquanto Rüsen oferece marco teórico sobre consciência histórica, Barca e Schmidt adicionam ênfase em pesquisa empírica sobre como sujeitos realmente aprendem história e criticam implementações curriculares que podem não favorecer essa aprendizagem profunda.
6. Concepções de História no contexto educacional brasileiro
6.1 Tradição e transformações
O ensino de história na educação brasileira passou por transformações significativas nas últimas décadas. Por muito tempo, predominou uma história tradicional, memorista, focada em narrativas eurocêntricas sobre "grandes homens" e marcos políticos da história nacional. A história era frequentemente ensino de conteúdos desconectados da realidade vivida dos alunos, sem espaço para questionamento ou pensamento crítico. Particularmente, reproduzia-se narrativa de Brasil harmônico e sem conflitos, obscurecendo violências da escravidão, genocídios indígenas e desigualdades estruturais.
A partir dos anos 1980, a historiografia crítica começou a penetrar o ensino. Pesquisadores e educadores passaram a questionar narrativas tradicionais, incorporando novos sujeitos históricos e temáticas. Trabalhos sobre história da escravidão (que reconhecia a agenda de povos escravizados, seus descendentes e não apenas reproduzia perspectiva de senhores), história indígena (que reconhecia povos originários como sujeitos históricos contemporâneos e não apenas população colonial passiva), história das mulheres, história da sexualidade, e história da vida cotidiana multiplicaram-se. Historiadores como Gilberto Freyre, embora controversos por sua visão lusotropicalista que minimizava violências da colonização e escravidão, abriram caminho para estudos sobre cultura, mestiçagem e vida privada que influenciaram gerações posteriores de historiadores a questionar narrativas meramente políticas.
Legislações foram importantes nesse processo. A Lei 10.639/2003 instituiu obrigatoriedade do ensino de história da África e da cultura afro-brasileira e a Lei 11.645/2008 complementou, incluindo obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados. Essas legislações representam reconhecimento de que história ensinada deve incluir perspectivas historicamente excluídas e que educação deve combater racismo e contribuir para formação de consciência sobre pluralidade cultural brasileira.
6.2 Pedagogia crítica e educação histórica
Uma pedagogia crítica de história reconhece o estudante como sujeito ativo do processo de aprendizagem, não como recipiente passivo de informações. Nessa perspectiva, a construção ativa do conhecimento histórico passa pela problematização: apresentam-se questões que estimulam os alunos a investigar, interpretar e julgar. A história deixa de ser um conjunto de conteúdos acabados e torna-se campo de investigação.
A educação histórica crítica busca conectar o saber histórico aos problemas do presente, ajudando estudantes a compreender que a história é relevante para suas vidas e para compreensão de mundo. Simultaneamente, ela desenvolve capacidades cognitivas complexas: análise de fontes, construção de argumentos, compreensão de múltiplas perspectivas, pensamento sobre causação e mudança histórica. Essa pedagogia é essencial para formar cidadãos capazes de discernimento crítico diante da pluralidade de narrativas sobre passado disponíveis em contexto digital.
6.3 Formação histórica
A formação histórica não se reduz a acúmulo de informações históricas. Ela é um processo educativo amplo que, segundo Rüsen (2001), envolve a capacidade de gerir a experiência temporal, de construir identidade pessoal e de agir intencionalmente no presente. A formação histórica articula:
- Orientação temporal: capacidade de situar-se no tempo, compreendendo passado, presente e futuro em suas interconexões.
- Autoconhecimento: compreensão de si mesmo como ser histórico, formado por processos que precedem sua existência.
- Práxis: capacidade de agir no presente, orientado por compreensão crítica do passado e construção de possibilidades futuras.
A formação histórica, nesse sentido, é essencial para preparar seres humanos capazes de lidar conscientemente com demandas contemporâneas e de contribuir para transformação social emancipatória. Não se trata apenas de competências técnicas, mas de desenvolvimento de humanidade reflexiva e responsável.
7. Verdade histórica, objetividade e critérios de validação
O debate contemporâneo sobre a verdade histórica procura superar dicotomias falsas e simplistas entre "objetivismo" (a ideia de que fatos falam por si) e "relativismo" (a ideia de que tudo é interpretação igualmente válida). Em seu lugar, estudiosos desenvolveram concepções mais sofisticadas.
A perspectiva de Adam Schaff sobre conhecimento histórico oferece síntese produtiva: o conhecimento histórico é sempre interpretativo (não há acesso ao passado que não seja mediado por presente), mas não é arbitrário. Existe objeto de conhecimento (a realidade passada) que existe independentemente do sujeito cognoscente. A tarefa do historiador é conhecer esse objeto através de prática rigorosa mediada por critérios racionais.
Embora reconhecendo o caráter interpretativo e situado do conhecimento histórico, é possível estabelecer critérios racionais que permitem julgar entre interpretações concorrentes:
- Análise crítica de fontes: exame rigoroso de documentos, artefatos e testemunhos; considerando sua autenticidade; contexto de produção; limitações; potencialidades e; se possível, autor/produtor da fonte, seus interesses, ideologias e concepções de mundo.
- Argumentação racional: construção de argumentos logicamente coerentes que expliquem fenômenos históricos.
- Compatibilidade com evidências: as interpretações devem ser compatíveis com o conjunto de evidências disponíveis, não apenas com seleção parcial, evitando assim, desinformações e negacionismos.
- Plausibilidade narrativa: a interpretação deve fazer sentido como narrativa que articula diferentes elementos em uma totalidade compreensível.
- Significância: a interpretação deve ter relevância para compreender questões do presente ou para ampliar conhecimento histórico reconhecido.
- Abertura ao questionamento: a interpretação deve estar aberta a crítica e revisão à luz de novas evidências ou argumentos.
Esses critérios não garantem uma única verdade histórica correta, mas permitem distinguir entre interpretações mais ou menos bem fundamentadas, mais ou menos válidas como conhecimento. Eles protegem história de colapso em relativismo absoluto, oferecendo base para combate ao negacionismo historiográfico.
8. Concepções contemporâneas de Tempo Histórico
As concepções tradicionais de tempo histórico, ancoradas em ideia de linearidade simples (passado → presente → futuro), foram progressivamente substituídas por compreensões mais sofisticadas. O tempo histórico é reconhecido como construção social e cultural, não como dado natural.
Historiadores como Fernand Braudel propuseram distinções entre diferentes durações históricas: longa duração (estruturas que mudam muito lentamente), média duração (conjunturas), e curta duração (eventos). Essas diferentes temporalidades coexistem, interagem e produzem complexidade histórica. Além disso, reconhece-se que diferentes temporalidades podem ser simultâneas:
- enquanto algumas estruturas se transformam lentamente, outras mudam rapidamente;
- alguns grupos experimentam a história de maneiras distintas;
- narrativas diferentes sobre passado podem organizar tempo de formas diversas.
Conceitos como mudança e permanência tornaram-se centrais para compreensão histórica sofisticada. A história não é simples progressão linear, mas combinação complexa de mudanças e continuidades. Entender essa dialética é fundamental. A mudança raramente é total e completa; frequentemente há permanências e remanescências de passado. Simultaneamente, a permanência nunca é absoluta; até as estruturas mais estáveis transformam-se, ainda que lentamente.
Conceitos como sincronologia - compreensão de que eventos em diferentes lugares podem estar conectados ou sincronizados - ampliam análise histórica para além de histórias nacionais isoladas (CARDOSO; VAINFAS, 1997). Conceitos como "o longo século XIX" ou "Renascimento" funcionam como construtos que organizam compreensão, mas sempre abertos a revisão.
Pedagogicamente, o trabalho com conceitos sofisticados de tempo histórico é essencial para desenvolvimento de consciência histórica. Crianças pequenas começam com noções simples de sequência temporal e, progressivamente, desenvolvem compreensão de durações diferentes, sincronias e mudanças estruturais. Tarefas como construção de linhas do tempo, análise de periodização, comparação de ritmos de mudança em diferentes dimensões (tecnológica, política, cultural, ambiental, etc.) contribuem para esse desenvolvimento.
9. Memória, História e Identidade
A distinção entre memória e história, embora útil didaticamente, é mais complexa do que sugerem algumas formulações (RICOEUR, 2000). A dicotomia simplista que apresenta memória como "viva, emotiva" e história como "crítica, reflexiva" reproduz perspectiva de Pierre Nora que foi criticamente revista por historiadores como Paul Ricoeur.
Ricoeur demonstrou que a dicotomia é artificial. A história trabalha sempre com memória - memória cristalizada em documentos, em objetos, em transmissões orais. A memória é sempre histórica, moldada por contextos históricos específicos e por poder. Simultaneamente, a história não é simples oposição à memória, mas sua ressignificação crítica. Ambas envolvem narrativa. Ambas envolvem emocionalidade e significação existencial.
A distinção mais precisa é entre memória espontânea e história como trabalho metódico sobre memória. A história oferece questionamento crítico, exame de evidências, confronto entre perspectivas diferentes e reconhecimento de lacunas e silêncios. Mas faz isso sempre em diálogo com memória, reconhecendo que toda história é também uma forma de memória.
Tanto memória quanto história são fundamentais na constituição de identidades. Identidade pessoal envolve compreensão de si mesmo no tempo (de onde viemos, como mudamos, quem nos tornamos). Identidade coletiva envolve compartilhamento de narrativas sobre origens comuns, trajetórias conjuntas, desafios comuns, futuros possíveis.
Essas identidades nunca são singulares ou monolíticas. Cada pessoa, cada grupo participa de múltiplas narrativas identitárias. A história de um indivíduo cruzar-se-á com narrativas de gênero, classe, etnia, religião, nação, profissão, orientação sexual, geração, capacidade/deficiência, etc. Compreender a pluralidade de perspectivas e identidades é fundamental para pensamento histórico sofisticado. Também é fundamental para reconhecimento de que sujeitos históricos não são simples categorias abstratas, mas seres concretos com histórias complexas e frequentemente contraditórias.
O conceito de interseccionalidade, cunhado pela jurista Kimberlé Crenshaw (1989), oferece ferramental crucial para essa compreensão. Crenshaw argumentou que opressões como racismo e sexismo não atuam de forma isolada, mas se cruzam e se reforçam mutuamente, criando vulnerabilidades e formas específicas de discriminação. Mulheres negras, por exemplo, vivem experiências que não podem ser compreendidas olhando-se apenas para raça ou apenas para gênero, pois a intersecção de ambas cria forma particular de opressão. Essa perspectiva é fundamental para historiografia contemporânea, pois permite compreender como estruturas de poder múltiplas interagem, moldando experiências históricas diferenciadas de diversos sujeitos. Narrativas históricas que ignoram interseccionalidade perpetuam invisibilidade de grupos cujas experiências não são redutíveis a uma única categoria de opressão.
As conexões entre história, memória e identidade têm implicações éticas e políticas profundas. O reconhecimento de sujeitos históricos marginalizados, a reparação de histórias silenciadas, o questionamento de narrativas que naturalizam desigualdade, tudo isso faz parte de responsabilidades ética e política da história e de seu ensino. Isso conecta-se ao conceito de justiça epistêmica: reconhecer que diferentes grupos têm direito a suas histórias e que compreensão completa do passado exige pluralidade de perspectivas.
Legislações como Lei 10.639/2003 e Lei 11.645/2008 representam reconhecimento dessa justiça epistêmica. Mas implementá-las genuinamente exige transformação curricular profunda, não simples adição de "conteúdo afro" ou "conteúdo indígena". Exige repensar toda história brasileira a partir de múltiplas perspectivas. História da escravidão não é capítulo separado, mas estrutura fundamental que atravessa toda história colonial e imperial brasileira. História indígena não é restrita ao período colonial, mas questão contemporânea. A Lei 11.645/2008, particularmente, torna obrigatório ensino de história e cultura afro e indígena no contexto de reconhecimento de que povos originários são sujeitos contemporâneos e não apenas população colonial do passado e que sua autodeterminação, direitos territoriais e conhecimentos são centrais para Brasil atual.
10. Concepções de História na BNCC, Reforma do Ensino Médio e Debates Contemporâneos
10.1 BNCC, Lei 13.415/2017 e contexto de flexibilização curricular
A Base Nacional Comum Curricular, homologada em 2017 e 2018, representa marco importante nas políticas educacionais brasileiras. Para Ensino Médio, trabalha articuladamente com Lei 13.415/2017 (Reforma do Ensino Médio), que instituiu organização curricular por "itinerários formativos" além da BNCC. Essa mudança legal é decisiva para entender desafios contemporâneos ao ensino de história.
Concretamente: a BNCC estabelece base comum de conteúdos obrigatórios; a Lei 13.415/2017 permite que até 60% do currículo do ensino médio seja flexível, organizado em itinerários por área de conhecimento (KUENZER, 2017). A história integra-se à área de "Ciências Humanas e Sociais Aplicadas", junto com geografia, sociologia e filosofia. O risco não é necessariamente com a BNCC em si, que prescreve habilidades e competências para história, mas com a implementação da flexibilidade: escolas com recursos limitados podem reduzir drasticamente ensino de história, substituindo-o por itinerários técnicos ou outras áreas mais "atrativas" aos olhos de gestores orientados por mercado (TEIXEIRA, 2020).
A BNCC articula aprendizagem histórica em torno de competências e habilidades, enfatizando "atitudes historiadoras": processos de identificação, comparação, contextualização, interpretação e análise (ALMEIDA, 2020). Essas competências procedimentais são importantes e inegavelmente parte do trabalho histórico. Contudo, conforme crítica de Maria Auxiliadora Schmidt (2016), existe tensão entre essa pedagogia de competências e educação para formação de consciência histórica: reduz-se história a conjunto de habilidades transferíveis, sem necessariamente desenvolver capacidade de sujeitos orientarem-se historicamente na vida prática.
Críticos apontam múltiplos problemas dessa configuração (SCHMIDT, 2016; KUENZER, 2017; TEIXEIRA, 2020; ALMEIDA, 2020). Primeiro, pedagogia de competências pode instrumentalizar história, reduzindo-a de forma problemática (SCHMIDT, 2016). Segundo, flexibilização permitida pela Lei 13.415/2017 fragiliza história como componente curricular (KUENZER, 2017). Não há garantia de que conceitos fundamentais de história sejam abordados em todas as escolas. Em contextos onde história compete por espaço com itinerários técnicos e recursos limitados, história frequentemente é enfraquecida (TEIXEIRA, 2020). Terceiro, a ênfase em "competências necessárias em um mundo do trabalho cada vez mais complexo" corre risco de subordinar objetivos educativos a objetivos econômicos, transformando educação em simples preparação para mercado de trabalho (KUENZER, 2017)
A flexibilidade curricular promovida pode resultar em enfraquecimento não apenas quantitativo (menos horas) mas qualitativo (menor profundidade). Não há garantia de que aprendizagem chegue ao desenvolvimento de consciência histórica genética (segundo conceituação de Rüsen), capaz de orientação crítica para ação transformadora.
Apesar de críticas justificadas, educadores podem desenvolver apropriação crítica da BNCC e Lei 13.415. A insistência em múltiplas perspectivas, em inclusão de diferentes sujeitos históricos, em conexão entre história e presente, pode ser aproveitada para fins críticos. Competências prescritas podem ser interpretadas no sentido de aprendizagem histórica significativa e formação para consciência histórica contra-hegemônica. A integração de tecnologias digitais abre possibilidades para novas metodologias, acesso a fontes históricas e produção de conhecimento histórico por estudantes. Essas possibilidades exigem, contudo, que educadores mantenham vigilância teórica e metodológica, resistindo a instrumentalização e priorizando formação de consciência histórica e pensamento crítico sobre história (SCHMIDT, 2016).
11. Debates Contemporâneos: História Pública, Perspectiva Decolonial e Negacionismo
11.1 História Pública e História Digital
Conceito de história pública ganhou relevância crescente nas últimas décadas, referindo-se a formas através das quais historiadores e conhecimento histórico circulam na esfera pública. Para além de academia, história é presente em museus, sítios históricos, documentários, redes sociais, mídias digitais. A história digital emergiu como campo que estuda não apenas uso de tecnologias no trabalho historiográfico, mas a própria história feita através de meios digitais (PRADO, 2021).
A era digital trouxe transformações profundas. Por um lado, democratização de acesso a fontes históricas através de arquivos digitalizados. Por outro lado, proliferação de conteúdo em plataformas digitais sem mediação de historiadores profissionais, frequentemente contendo desinformação. Historiadores enfrentam desafio de manter rigor metodológico enquanto atuam em espaço público digital.
11.2 Giro Decolonial e Crítica da Historiografia Eurocêntrica
O giro decolonial refere-se a movimento teórico e prático desenvolvido pelo Grupo Modernidade/Colonialidade a partir do final dos anos 1990, com importantes contribuições de pensadores como Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Nelson Maldonado-Torres, Enrique Dussel e Catherine Walsh, entre outros (BALLESTRIN, 2013). Não se trata de autoria individual, como às vezes é imprecisamente apresentado, mas de coletivo que realiza movimento epistemológico fundamental para renovação crítica das ciências sociais na América Latina.
O Grupo Modernidade/Colonialidade problematiza a ideia de que colonialismo terminou com independências políticas nos séculos XIX e XX. Propõe que a "colonialidade" (padrão de poder que organiza mundo moderno) persiste como estrutura que organiza relações econômicas, políticas, culturais e epistêmicas. O pensamento decolonial questiona suposições fundamentais da modernidade ocidental, particularmente a ideia de que conhecimento e desenvolvimento europeus constituem modelo universal. (BALLESTRIN, 2013)
Na historiografia, isso significa crítica ao eurocentrismo que naturalizava perspectiva europeia como universal. Significa reconhecimento de que conhecimento histórico produzido em/sobre América Latina não deve ser simples repetição de paradigmas europeus, mas construção própria. Significa valorização de conhecimentos de povos originários, povos negros, e outras perspectivas marginalizadas pela colonialidade. Para educação histórica, implica reconhecimento de que história ensinada deve questionar perspectiva eurocêntrica e incorporar conhecimentos outros.
11.3 Negacionismo historiográfico e distinção do revisionismo legítimo
Fenômeno crescente de negacionismo histórico representa ameaça séria à história como conhecimento. Importante estabelecer distinção precisa entre revisionismo historiográfico legítimo e negacionismo (OLIVEIRA, 2023).
O Revisionismo historiográfico é parte inerente do trabalho científico: diante de novas fontes, novos métodos, novas perspectivas teóricas, historiadores revisitam interpretações estabelecidas. Esse revisionismo contribui para desenvolvimento do conhecimento (BLOCH, 2001).
Negacionismo histórico, por contraste, rejeita conhecimento histórico estabelecido em bases científicas e metodológicas reconhecidas, em nome de suposta "verdade oculta" pelas instituições acadêmicas por supostos "interesses políticos". O negacionismo caracteriza-se pela seleção e distorção de evidências, anacronismo, uso acrítico de fontes primárias, e apelo à emoção em detrimento de lógica. Não busca conhecimento, mas defesa a priori de tese sobre passado "incômodo" (OLIVEIRA, 2023)
No Brasil contemporâneo, negacionismo manifesta-se particularmente em relação a "passados sensíveis", como eventos traumáticos coletivos que permanecem controversos:
- ditadura militar (minimizando ou negando violências e violações de direitos humanos);
- escravidão (minimizando brutalidade do sistema, romantizando relações senhor-escravo ou negando legado de desigualdades estruturais);
- e genocídios indígenas (negando intencionalidade ou escala do extermínio, afirmando que "indígenas simplesmente desapareceram" através de processos "naturais")
- dentre outros negacionismos que atingem, principalmente, as minorias.
Historiadores profissionais têm responsabilidade ética de enfrentar negacionismo não apenas através de argumentação acadêmica, mas de atuação na esfera pública, em mídias digitais, em espaços educacionais (OLIVEIRA, 2023). Isso exige capacidade de comunicar pesquisa complexa de forma acessível, sem comprometer rigor. Educadores, especialmente, devem trabalhar para que estudantes desenvolvam capacidades críticas para discernir entre interpretações bem fundamentadas e negacionismo.
12. Síntese: perspectivas de futuro
O futuro do ensino de história no Brasil exige diálogos intensos entre diversos campos e atores. Historiadores profissionais e educadores precisam conversar, enriquecendo-se mutuamente. Pesquisadores sobre educação histórica podem melhor informar práticas pedagógicas. Saberes acadêmicos precisam dialogar com culturas juvenis, vivências de estudantes e conhecimentos comunitários.
Esse diálogo é especialmente urgente em contextos onde violências como racismo, machismo, lgbtfobia, desigualdade de classe marcam experiências de estudantes. Uma história que ignora essas violências ou as naturaliza falha em suas responsabilidades ética e política. Uma história que as tematiza, que reconhece lutas de resistência, que oferece exemplos de transformação, contribui para formação de sujeitos capazes de compreender e transformar essas realidades.
Alguns desafios contemporâneos exigem atenção especial:
- Combate ao negacionismo historiográfico: A proliferação de narrativas ahistóricas, negacionismo historiográfico e teorias conspiratórias representa ameaça séria. Educadores devem trabalhar no sentido de desenvolver capacidades críticas em estudantes para discernimento entre interpretações bem fundamentadas e negacionismo. Implica compreensão de diferença entre revisionismo legítimo e negacionismo ideológico.
- Educação para cidadania crítica: Educação histórica exige história que prepare sujeitos para compreender sistemas de poder, ideologias, lutas sociais. Não é história "pura" ou "acima das ideologias", ou seja, toda história reflete posicionamentos, mas é uma história reflexiva sobre seus próprios posicionamentos e aberta ao questionamento.
- Tecnologias sem perda de rigor: Tecnologias digitais oferecem possibilidades inéditas de acesso a fontes e produção de conhecimento, mas também facilitam disseminação de desinformação. Educação histórica deve preparar sujeitos capazes de discernimento crítico diante da pluralidade de narrativas em circulação.
- Inclusão genuína de perspectivas historicamente marginalizadas: Implementação genuína de Lei 10.639/2003 e Lei 11.645/2008 exige transformação curricular profunda. Exige repensar toda história brasileira a partir de múltiplas perspectivas, com atenção a interseccionalidade de opressões.
- Resistência à descurricularização por flexibilização: A Lei 13.415/2017, se implementada sem cuidado, pode resultar em enfraquecimento significativo do ensino de história em muitas escolas. Educadores devem atuar politicamente para garantir que história mantenha espaço significativo no currículo, não como "conteúdo opcional" facilmente dispensável.
O compromisso ético fundamental é com verdade e não com a verdade absoluta e inquestionável, mas com comprometimento com rigor, com evidência, com diálogo aberto entre interpretações concorrentes. A história não é ficção, embora seja sempre narrada. Preservar essa distinção é responsabilidade essencial, particularmente em contexto onde fronteira entre história e ficção, entre verdade e desinformação, encontra-se sob ataque.
Compromisso ético também significa responsabilidade com sujeitos históricos e com dignidade daqueles que vieram antes, com direitos daqueles que ainda virão. Significa reconhecer que nossas escolhas hoje molda possibilidades históricas de gerações futuras. Uma história ensinada com essa consciência de responsabilidade contribui para formação de sujeitos éticos, capazes de agir com consciência de suas implicações históricas.
Finalmente, compromisso ético significa atenção particular aos sujeitos historicamente silenciados. Trabalhar para que suas histórias sejam conhecidas, seus direitos reconhecidos, suas contribuições valorizadas não é questão de "caridade" ou "justiça abstrata", mas de compreensão mais adequada do passado e do presente. Uma história verdadeira é história que inclui essas perspectivas.
13. Conclusão
As concepções de história não são abstratas ou alheias às lutas sociais. Elas refletem escolhas teóricas, metodológicas e políticas que impactam profundamente como compreendemos o passado, orientamos o presente e imaginamos futuros. Uma história tradicional e eurocêntrica produz diferentes efeitos do que uma história crítica e plural. Uma história memorista produz diferentes sujeitos do que uma história que desenvolve consciência histórica sofisticada. Uma história que silencia sujeitos marginalizados produz diferente compreensão do que uma história que reconhece múltiplas perspectivas.
Para educadores comprometidos com educação libertadora e transformadora, compreensão das concepções de história é ferramenta indispensável. Permite compreender o que está em jogo quando ensinamos história, permite avaliar criticamente orientações curriculares, permite imaginar práticas pedagógicas alternativas que contribuam para formação de sujeitos históricos conscientemente engajados com realidades de seu tempo.
A história é, nesse sentido, simultaneamente ciência, narrativa, memória e práxis. Sua força reside exatamente em manter viva a tensão criativa entre essas dimensões. Como ciência, oferece rigor e critérios que protegem contra simplificações e distorções. Como narrativa, oferece forma que torna conhecimento histórico significativo e memorável. Como memória, oferece continuidade existencial entre gerações e reconhecimento de que presente é sempre atravessado por passado. Como práxis, oferece orientação para ação transformadora no presente, fundamentada em compreensão profunda de como chegamos até aqui.
Uma educação histórica adequada aos desafios contemporâneos e às esperanças de um futuro mais justo e igualitário deve integrar essas dimensões, sempre ancorada no rigor crítico, na responsabilidade ética e no reconhecimento de pluralidade. Somente assim pode contribuir para formação de consciência histórica capaz de compreender de forma profunda o mundo em sua complexidade, de reconhecer múltiplas perspectivas e lutas, de perceber as exclusões e silêncios, e de orientar-se para construção de futuros que não reproduzam as violências e desigualdades do passado, mas que trabalhem em direção a sociedades verdadeiramente democráticas e igualitárias.
Questões de Múltipla Escolha
Questão 1: Considerando as concepções historiográficas discutidas no texto, marque a alternativa correta sobre a historiografia tradicional:
a) Valoriza o papel dos grupos subalternos e marginalizados na construção da história.b) Prioriza narrativas lineares, grandes acontecimentos e personagens políticos.c) Enfatiza múltiplas perspectivas e a construção coletiva do conhecimento histórico.d) Propõe análise da estrutura social com enfoque marxista e decolonial.e) Integra tecnologias digitais na produção de conhecimento histórico.
Questão 2: Acerca das concepções epistemológicas contemporâneas, assinale a alternativa correta:
a) Defendem que o conhecimento histórico é totalmente objetivo e neutro, sem influência do presente.b) Negam a possibilidade da verdade histórica, focando apenas em interpretações pessoais.c) Reconhecem que o conhecimento histórico é mediado por perspectivas e contextos, mas validado por critérios rigorosos.d) Adotam a memorização de datas e fatos como única metodologia válida.e) Valorizam apenas a história política e militar no ensino escolar.
Questão 3: Sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a reforma do ensino médio, marque a afirmativa correta:
a) A flexibilização curricular fortaleceu o ensino de história e garantiu abordagem plural em todas as escolas.b) A BNCC estabelece competências e habilidades para história, mas há risco de enfraquecimento do componente curricular devido à flexibilização permitida pela Lei 13.415/2017.c) O ensino de história no Brasil não sofreu alterações recentes nas propostas curriculares.d) O foco exclusivo da BNCC é nas habilidades técnicas, sem considerar a formação de consciência histórica.e) A reforma garantiu obrigatoriedade de ensino de história em 100% do tempo escolar sem riscos de redução de carga horária.
Questão 4: De acordo com a pedagogia crítica do ensino de história, analise as afirmativas abaixo e assinale a alternativa correta:
a) O estudante é visto como mero receptor passivo de informações históricas.b) O ensino crítico de história evita problematizações e aproxima conteúdos fechados à realidade dos alunos.c) Propõe que fatos históricos sejam inquestionáveis e apresentados como verdades absolutas.d) Centra-se na reprodução de datas e personagens sem estimular o pensamento crítico.e) Valoriza a construção ativa do conhecimento, estimulando investigação, interpretação e análise pelo aluno.
Gabarito Comentado
Questão 1: B — A historiografia tradicional prioriza grandes personagens e eventos políticos, valorizando narrativas lineares e uma perspectiva eurocêntrica, conforme destacado no texto. As demais alternativas abordam características de correntes mais críticas e modernas.
Questão 2: C — As concepções epistemológicas contemporâneas reconhecem que o conhecimento histórico é situado e mediado por perspectivas, mas sua validade depende de critérios metodológicos rigorosos. O texto rejeita tanto o objetivismo quanto o relativismo puro.
Questão 3: B — A BNCC realmente estrutura competências para história, mas o texto ressalta que a flexibilização curricular implica risco de redução e enfraquecimento do ensino de história em várias escolas devido à Lei 13.415/2017.
Questão 4: E — A pedagogia crítica defende a participação ativa do aluno na investigação e análise do conhecimento histórico, problematizando e aproximando conteúdos da realidade do estudante. O texto apresenta a pedagogia crítica em oposição ao ensino tradicional memorista.
Dicas para Concurseiros
1. Compare as diferentes correntes historiográficas
- Tenha atenção à evolução dos conceitos históricos: compare correntes tradicionais e críticas para entender como se deu a transformação nas abordagens do ensino de história.
- Relacione discussões epistemológicas com práticas de sala de aula: compreenda como critérios de validade e debate entre interpretações influenciam o ensino atual.
- Estude impactos das políticas educacionais, como a BNCC e reformas recentes: analise como as mudanças legais afetam o espaço da história no currículo escolar.
- Exercite o pensamento crítico e a análise de múltiplas perspectivas: busque compreender o papel da história na formação cidadã e na compreensão de identidades, memórias e lutas sociais.
Referências
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Como referenciar este texto:
Blog do Lab de Educador. As Concepções da História: Uma perspectiva teórica e educacional (Concurso para Professor de História). Zevaldo Sousa. Publicado em 23/11/2025. Disponível em <https://blog.labdeeducador.com.br/2025/11/as-concepcoes-da-historia-uma-perspectiva-teorica-e-educacional.html>. {codeBox}
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